OPINIÃO
José Medeiros Ferreira
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Professor universitário
Tudo parece indicar que em vários lados se prepara uma grande guerra religiosa. Só assim se podem entender as palavras do Papa Bento XVI no passado dia 12 na universidade alemã de Ratisbona. Teólogo, ou seja, racionalizador dos mistérios da fé, foi certamente com a cabeça fria que o actual bispo de Roma recuou até uma polémica ocorrida no século XIV, entre o imperador bizantino Manuel Paleólogo e um erudito persa, sobre o lugar da violência no confronto religioso.
É verdade que Ratzinger adora a História das Ideias e ama ressuscitá-la com novidade e surpresa. Também é verdade que, como papa e bispo de Roma, se dirigia às elites alemãs na Alemanha católica do bispo colegialista Lehman: um antagonista religioso externo como o Islão pode ajudar à unidade hierárquica interna da Igreja. Situar essas declarações na Alemanha natal ainda faz sentido pelo menos por mais duas razões: por causa da existência naquele território de uma vasta comunidade muçulmana e pela aliança implícita que vários dirigentes islamitas estão a propor à RFA.
Bento XVI não ignorava certamente que as suas declarações sobre o modo como um dos últimos chefes do Império Romano do Oriente se referira ao contributo de Maomé para as guerras religiosas poderia ajudar a cavar o fosso entre cristianismo e islamismo. De certa maneira Bento XVI acaba de terminar com um longo período de paz entre o Vaticano e o mundo islâmico, ilustrado por entendimentos visíveis desde Jerusalém a Bagdade. Porquê? Essa é a grande discussão.
É verdade que o discurso de Ratisbona se destinava a um público ilustrado e que por isso mesmo se coloca intelectualmente numa atitude metacrítica sobre o que lhe é proposto. É verdade que o Vaticano está em plena transição entre a administração de João Paulo II e de Bento XVI, e que os novos responsáveis da Secretaria de Estado e da Secretaria das Relações com os Estados da Santa Sé, os cardeais Tarcisio Bertone e Dominique Mamberti ainda não entraram verdadeiramente em funções. É verdade que o Papa já lamentou mais do que uma vez as interpretações fundamentalistas dadas às suas declarações quer no Ocidente que no mundo islâmico.
É verdade que os esforços de apaziguamento da Cúria Romana impendem um imediato aproveitamento político do discurso de Ratisbona pelos fundamentalistas islâmicos e pelos ocidentais fundamentalistas. Mas o que a Igreja Católica anunciou pela voz do seu máximo representante foi o lugar que ela ocupará caso haja uma grande guerra religiosa, desencadeada ou não pelos fundamentalistas islâmicos. E este sinal é poderoso na comu- nidade católica europeia e mundial.
Não que eu acredite em guerras religiosas desde as cruzadas à jihad. São enganos do Espírito sobre as razões dos comportamentos violentos entre povos. Seria certamente incapaz de suportar a dogmática islamita em estados teológicos. Por isso admirei Kemal Attatürk e ainda hoje vejo na entrada da Turquia na União Europeia uma espécie de homenagem ao seu esforço de laicização do Estado e até da sociedade. Por isso também temo, e lamento, que as palavras de Bento XVI sejam aproveitadas para adiar esse confronto da União Europeia com uma real diversidade cultural. Afinal mais um teste à racionalidade das sociedades europeias depois das guerras religiosas...
Somos todos muito ciosos da nossa capacidade de assimilar a diferença de culturas e de valores sobretudo fora das fronteiras da nossa civilização. O edifício racional organização da sociedade é aquilo que se sabe, sempre dependente de acidentes e de pavores. Depois das Luzes a Europa já teve a deriva dos totalitarismos e do racismo. A soberba dos intelectuais ocidentalistas usufrutuários das liberdades públicas, que foram tão dificilmente conquistadas e reconquistadas e que são sempre reversíveis, não ajuda a entender o momento internacional que se vive. Ainda agora neste episódio do discurso de Ratisbona quantos violentos não se sentiram lesados pelas lamentações posteriores de Bento XVI? Esses são os partidários de uma grande guerra religiosa.
Não quero deixar de assinalar que o director do DN, António José Teixeira, num editorial lúcido e corajoso marcou um caminho de reflexão sobre as razões do discurso de Ratisbona.
Criticar as caricaturas também faz parte da liberdade de expressão. E Bento XVI sabe as matérias em que é falível.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS - 19.09.2006