Por Mia Couto
Em 1985, decidi abandonar o jornalismo e iniciar o curso de Biologia. Na altura, eu prensava que podia trocar de profissão. Engano meu. As profissões, quando abraçadas por paixão, são como os amores: não se trocam. Apenas se somam, numa rede de multiplicada de afectos.
Na altura, os biólogos moçambicanos contavam-se pelos dedos. Mais do que contados, porém, eles eram descontados. Ser biólogo era um serviço quase desqualificado. Aprendia-se Biologia para ensinar Biologia a outros, num ciclo fechado de escola e aluno. Mas a Biologia no mundo já prestava outras incumbências, mais dignas, mais prestigiadas. Por força das preocupações ecológicas se requeria do biólogo um papel central na salvação do mundo. Bom, salvar o mundo é muito mas ajudar a pensar a terra, a nossa terra, como um entidade viva era essa a minha intenção quando, pela segunda vez, me inscrevi na Universidade.
Augusto Cabral foi um dos primeiros especialistas a dar uma palestra na Faculdade. Ele vinha falar sobre as potencialidades da Biologia para estudantes que não investiam muita crença no curso. Eu já conhecia Cabral como artista e crítico de arte. Quando entrou na sala, porém, se percebeu de imediato que, para os meus jovens colegas, ele tinha contra si o facto de ser um homem pequeno, com evidentes dificuldades de audição. Mão ampliando o pavilhão da orelha, ele perguntava a cada um que lhe alguma coisa lhe perguntava:
- Eh pá ! Repete lá outra vez, pá....
Vai ser um desastre, pensei. Ao fim de poucos minutos, porém, Augusto Cabral tinha despertado um formigueiro: as perguntas deflagravam, as dúvidas eram colocadas de forma apaixonada. O homem que mexia em cobras tinha desenroscado a serpente da inquietação na alma daquela meia centena de jovens. No final, o orgulho estava estampado no rosto dos jovens. Mais do que uma aula sobre ciência, o que ali tinha acontecido era uma prova que ser-se grande é ser-se simples. Dificuldade de audição, apenas na aparência. Augusto Cabral escutava para além do audível. Pequena estatura ? Ilusão: aquele homem se distribuía com aptidão de semente. Ele tinha a disponibilidade dos homens generosos, que ganha apenas na medida em que pode dar.
Entendi então que Cabral era um homem com um missão: cabia-lhe valorizar as ciências biológicas não apenas entre o público mas entre os próprios biólogos. Ele seria o guru de uma ciência de sentido emergente numa nação acaba de emergir. Desde essa longínqua aula, Augusto Cabral confirmou esse papel: o biólogo de serviço, o cientista de plantão, o pensador de recurso. Surgia um bicho ou uma planta enigmáticos? Procurava-se o parecer do cientista. Uma cobra levantava poeiras místicas ? Chamava-se Augusto Cabral. Era preciso botar nome numa espécie? Ligava-se para o Director do Museu. A voz anasalada de quem fala alto porque ouve baixo somava-se ao gesto de quem sabia embalsamar e tornar vivo um espécime morto.
Augusto Cabral tanto tomou para si essa causa didáctica que, aos poucos, ele mesmo se converteu num museu vivo, divulgando, decifrando, criando gosto e curiosidade numa nação em que as explicações mais fáceis são sempre outras. As artes moçambicanas já deviam muito a este homem. As ciências e o espírito da ciência ficam a dever a Augusto Cabral esse papel pioneiro: o de um sábio disponível, um ensinador de uma matéria infinita que se chama Vida.
SAVANA - 20.10.2006