Carlos Vaz Ferraz
"Esta é a minha verdade sobre o estertor do colonialismo e sobre o dossier da descolonização; sobre os mais salientes acidentes do processo revolucionário posterior a Abril que lhe determinaram o tempo, o modo e o resultado final". Assim descreve o doutor António Almeida Santos as suas intenções para os dois volumes a que deu o título "Quase Memórias" que acaba de publicar na Casa das Letras.
O doutor Almeida Santos é um homem assumidamente modesto. Antes do 25 de Abril viveu e exerceu advocacia em Moçambique durante vinte e um anos, depois da revolução foi Ministro da Coordenação Territorial em quatro governos provisórios, ministro da Comunicação Social, da Justiça, ministro de Estado, candidato a primeiro-ministro, presidente da Assembleia da República, é um dos mais influentes
patriarcas da nossa sociedade e nem agora, aos oitenta anos, se atreveu a mais que umas modestas "Quase Memórias" onde descreve factos que testemunhou, mas pelos quais não é responsável.
Se, em vez do reconhecido talento para a música o doutor Almeida Santos tivesse os mesmos dotes para o desenho, seria relativamente ao colonialismo português e à descolonização um notável retratista, como os que acompanhavam as antigas expedições dos exércitos para, dum monte seguro, longe dos tiros, fixarem nas telas das gravuras as peripécias das batalhas que os soldados travavam. Ou um talentoso cronista de viagens.
Temerão alguns que o título "Quase Memórias" contenha uma ameaça implícita: olhem se eu escrevia as Memórias, sem o quase! É um receio injustificado. As mil páginas das "Quase Memórias" são suficientes para o doutor Almeida Santos, além de exibir a sua modéstia, esclarecer aquela que é a verdade mais nua e crua do que foi a relação de Portugal com África durante o século vinte.
A verdade, como repetidamente afirma ao longo da obra, é que, com as excepções de S. Tomé e de Cabo Verde, a responsabilidade total do processo de descolonização foi dos militares que fizeram o 25 de Abril, de Spínola a Costa Gomes, de Melo Antunes às Comissões Coordenadoras do MFA. Na verdade, quase cem anos antes, já o malogrado Mouzinho de Albuquerque escrevera na carta ao Príncipe D. Luís que aquilo que Portugal fizera em África fora obra de soldados.
Com honestíssima modéstia o doutor Almeida Santos reconhece que os políticos portugueses estiveram mais uma vez fora dos grandes assuntos da História de Portugal, entretidos, como lhes é próprio, a
tratar da vidinha e dos negócios.
Embora o problema colonial tenha sido o centro da política portuguesa desde a Conferência de Berlim em 1890, a causa do fim da Monarquia e da intervenção de Portugal na Primeira Grande Guerra, a dura verdade que ressalta das "Quase Memórias" é que os políticos democratas portugueses, além de nunca terem enfrentado o problema colonial, também nada tiveram a ver com a descolonização. De facto
foram sempre os militares a tomar essa questão em mãos, entre outros através da tentativa de golpe de Botelho Moniz, da campanha de Delgado e a sua morte, do golpe de Beja, do 25 de Abril...
A dura verdade que as "Quase Memórias" de Almeida Santos revelam é que a oposição portuguesa, dos liberais e democratas cristãos aos socialistas, nunca estabeleceu relações politicamente sérias, ou
eficazes, com os movimentos de libertação das colónias. Daí que aos seus representantes não tenha restado outro papel de acompanhantes do MFA quando se tratou de estabelecer o modo de fazer a descolonização. Que andaram os oposicionistas a fazer por França, por Argel e Roma se não foram reconhecidos, nem respeitados, nem tidos em conta passou a ser um mistério que a participação do doutor Almeida Santos não esclarece, antes adensa.
Com algumas honrosas excepções o movimento descolonizador que percorreu os antigos impérios das potências europeias após o final da Segunda Guerra passou ao lado dos nossos democratas civis ou
apanhou muitos deles à sombra do regime de Salazar. Nestas circunstâncias, dada a ausência duma política para as colónias, que no Congresso da Oposição Democrática de 1973 em Aveiro só mereceu
uma estruturada intervenção de Medeiros Ferreira, e na falta de efectivas relações políticas dos oposicionistas portugueses com os dirigentes dos movimentos de libertação, o MFA apareceu naturalmente como uma extensão dos comunistas. Foi para aí que o atiraram os democratas que os acusam.
Não deve ter sido essa a intenção do doutor Almeida Santos, mas o que lemos nas mil páginas das "Quase Memórias"é o mais cruel retrato da incapacidade dos políticos portugueses da segunda metade do século vinte para considerarem essencial o que era essencial. Os que se apresentaram no dia seguinte ao da revolta dos militares para ocupar ministérios e embarcar em delegações estavam, quanto ao problema colonial (e talvez quanto a muitos outros), de mãos e cabeças tão nuas e vazias como as dos seus antecessores salazaristas e, trinta anos depois, ao acusar os pobres e desprezados militares de se terem chegado, mais uma vez, à frente da História, o doutor Almeida Santos presta-lhes involuntariamente um merecido tributo que é, tão maltratados têm sido, uma rara justiça. Mas não deixa de ser preocupante tanta falta de visão e coragem dos políticos que formataram o regime democrático. Talvez residam nestas quase ausências muitas das dificuldades que hoje vivemos. Esperemos pelas "Quase Memórias" dos anos seguintes para termos a certeza, agora sem a desculpa dos militares.
PÚBLICO - 28.11.2006
NOTA:
O título deste artigo estaria mais correcto se "Quase memórias... Umas verdades... Muitas mentiras..."
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE
Recent Comments