A talhe de Foice
Por Machado da Graça
Esta esqueceu, Patrão!
O escriba estava preocupado. Tinha sido chamado ao Patrão e parece que a razão era a história do jornal Domingo. A história que ele escrevera e tinha sido publicada.
É bem verdade que o escriba sabia que aquela história era incompleta. Que ele tinha tirado de lá uma grossa fatia. Mas será que o Patrão estava muito zangado por causa disso?
O escriba não via nenhuma razão para isso. Aquilo que ele tinha retirado eram aquelas coisas que ninguém, de certeza, ia querer recordar:
. Que o primeiro director do jornal tinha sido o Ricardo Rangel;
. Que o primeiro chefe de Redacção tinha sido o Machado da Graça;
. Que o primeiro chefe de Reportagem tinha sido o Mário Ferro;
. Que a equipa incluía os repórteres Atanásio Dimas e Jorge Costa e redactores como Luís Patraquim e Sebastião Alba;
. Que o autor da concepção gráfica tinha sido o Aníbal Martins,
. Que a documentalista era a Teresa Carvalho;
. Que o fotógrafo era o José Cabral.
. Que o primeiro Editorial do Domingo tinha apelado a um jornal não cinzento, mas sim com as cores vivas da Revolução;
. Que a experiência tinha durado pouco, porque o partido no poder não estava ainda preparado para coisas tão coloridas.
E, portanto, o escriba não percebia por que razão tinha sido chamado ao Patrão. Será que ia ser punido, quando tinha feito o seu melhor para satisfazer o Patrão? Grande injustiça seria, nesse caso.
Mas não. O Patrão parecia contente. Referiu mesmo, com satisfação, que o artigo estava escrito de tal forma que quem não conhecesse a verdadeira história ia ter dificuldade em recordar.
- Pois se conseguiste nem sequer falar do tempo em que a Lurdes Torcato foi chefe de Redação, isso prova que podemos fazer da memória histórica aquilo que quisermos.
Mais satisfeito, o escriba já sorria ao ouvir os comentários do Patrão. Tinha pena de não possuir uma cauda porque, se possuísse, ela estaria a abanar, desenfreadamente, da direira para a extrema direita, em sinal de grande satisfação.
Mas o Patrão queria mais pormenores. Queria saber, exactamente, porquê razão o escriba não tinha publicado as coisas como elas tinham acontecido na realidade. Como tinha sido possível ele ter passado por cima das pessoas que, de facto, tinham dado início ao jornal que, agora, comemora 25 anos de
vida.
E não encontrou nenhuma outra razão senão aquela que trazia dentro de si desde sempre:
- Esta esqueceu, Patrão!
O Patrão, satisfeito, sorriu e atirou para o chão um osso de galinha ainda com alguma carne.
O escriba ficou ali, a roer o osso, e a pensar como era boa a vida de quem fazia as vontades todas do Patrão.
Penso que ainda agora lá está.
À espera de uma festa do Patrão, agora satisfeito, e sem pensar que um dia esse mesmo Patrão lhe poderá dar um pontapé no rabo, quando as condições forem outras e esse tipo de escribas já não forem necessários.
Vida dificil a desses escribas. O bife em casa às vezes é pago com o ovo podre na cara, na praça pública.
Mas, sabemos, um escriba bajulador não se deixa vencer por essas coisas.
Continua em frente lambendo as botas de todos os Patrões.
E gostando do sabor que vai recolhendo do couro da bota.
A cada um segundo as suas alegrias, teria dito Marx se tivesse conhecido gente dessa.
Que nojo!!!
SAVANA - 03.11.2006