Espinhos da Micaia
Por Fernando Lima
Nestes dias o discurso oficial passa muito pelo distrito. É normal e é estratégico que acabada a guerra se concentrem finalmente esforços, lá onde, durante muitos anos deixou de haver vida, para além da meia dúzia de escombros a que foram reduzidas as administrações coloniais.
E alguns distritos, ou sedes distritais, são ainda isso mesmo. Fantasmas de um tempo que passou e que não volta mais. Mesmo que haja população, a que se pode chamar de desempregada e um sem número de pequenos expedientes do desenrascar a vida. São locais em que o ciclo económico expirou, ou dificilmente vai voltar a ser o que foi.
Há que ter coragem em fazer este reconhecimento, em vez de se preencher burocraticamente a quadrícula, porque no mapa dos tempos era reconhecida a “grandeza do lugar”.
Mas há os outros distritos. Provavelmente a maioria. A estrada principal reabilitada bateu-lhes à porta. Cahora Bassa transformou o breu das longas noites no frigorífico com cerveja gelada, na televisão com telenovelas brasileiras, mesmo que não se saiba ainda muito bem quem vai pagar a factura da energia que é fornecida sem estudos de viabilidade, basicamente sem economia que dê sustento ao milagre que é a energia.
Por isso estou num distrito que tem um abastecimento de água novo, mas não corre água nas torneiras. Por causa da economia. Porque a meia dúzia de utentes do sistema não tem “músculo” para pagar a factura do combustível que deve pôr a água nas canalizações e não se encontrou uma ong que pague generosamente a factura. E a luz aqui não foge à mesma lógica. Como ainda não foram agraciados com Cahora Bassa, o “distrito” — leia-se a localidade sede – só consegue dar quatro horas de energia a partir de geradores movidos a gasóleo. É esta a realidade simples da economia de mercado de algum modo subvertida por Cahora Bassa e alguns mecenas que fecham os olhos aos tais planos de negócio que são pedidos para cada projecto.
A sede do distrito também ganhou invariavelmente nova escola, posto de saúde ou hospital rural. São construções novas, pintadas a cores vivas e que habitualmente agridem arquitectonicamente o resto do casario. Como as administrações deram lugar aos “governos distritais”, uma parte das casas de habitação, das poucas que há, são agora direcções distritais, segundo as letras garrafais que ostentam nas fachadas. A casa do administrador é palácio e não tarda que haja também a primeira dama distrital, com ou sem decreto, para se pronunciar sobre latrinas melhoradas, a prevenção do HIV/SIDA, etc., como se colher milho, algodão e gergelim sejam místeres que passam formalmente ao lado de primeiras damas.
O distrito finalmente são novas pessoas. Apesar da tradicional dificuldade do moçambicano ir ao distrito porque não há “habitação compatível”, há novas caras por essas paragens. Jovens que foram às universidades, que passaram ao lado das células do partido, que têm ganas para mudar o mundo. São médicos, técnicos agrários, até juristas.
E o velho distrito conservador, caciquista, dominado pelo administrador e a sua corte de pequenos chefes, habitualmente pouco competentes, tira as garras para fora para receber este sangue novo que começa a chegar ao distrito.
É aqui onde se vai travar uma das próximas batalhas do distrito. O administrador que tem dificuldade em acompanhar a evolução dos tempos e os jovens que acreditam no Estado de Direito, que a Saúde Materno-Infantil é mais importante que uma intediante reunião com o senhor administrador ou o primeiro secretário do partido. Que acham que a ambulância é para transportar doentes e não para cartar lenha para casa do administrador. Que os processos são instruídos pelo ministério público e não ao belprazer do administrador que, sem ter visto filmes da Roma antiga, se comporta como um decadente pequeno imperador.
As novas contradições darão deliciosos relatórios às equipas de sociologia que fizerem trabalho de campo nesta matéria.
Acreditem, o distrito está a animar.
SAVANA - 24.11.2006