Esquina do Tempo
Por Luis Patraquim
O que ocorre dizer é que Cahora Bassa é pesada, inamovível. Nem a mão de Deus, que escreve direito por linhas tortas, conseguiria tirá-la de onde está. E onde, ao contrário do nome, todos os trabalhos agora recomeçam. Percurso difícil, estória com tantas ramificações que, perceber-lhe o fio e a meada, se tornará desafio para especialistas e estudiosos. Uma espécie de mercado de futuros que deixará perceber as linhas de força do presente.
Ao contrário da barragem, a G3 é leve. Sabemos a imagem e a quase parábola tantas vezes repetida e que a rediviva samoriana a que se assiste ajuda a não repetir.
Por rediviva, só mencionar o anúncio presidencial, eufórico e solene, paráfrase perfeita à proclamação da independência: "moçambicanas e moçambicanos, Cahora Bassa é nossa". Mandava a economia de meios e o contexto que se não repetisse a frase histórica, convocando os trabalhadores das minas e das serrações e os demais extractos da sociedade. Mas não deixou de perpassar uma espécie de halo épico, um sentido de gesta, um finalismo e um populismo, que a leve roupagem da circunstância propiciava.
Cahora Bassa é de Moçambique por interposta hipoteca. Alguém, que não o Tesouro, vai emprestar e pagar os tais 750 milhões de dólares mas espera-se que os mecanismos de decisão fiquem em mãos nacionais. Depois se verá. Dizem os especialistas que o mercado da energia, as reservas estratégicas da água e tutti quanti , agricultura incluída, são activos mais do que suficientes para viabilizar o negócio. Acredita-se.
O que se discute aqui é o discurso político. Nunca a parábola da G3 foi mais na "mouche" do que neste caso. Última herança do malfadado colonialismo?
O que ocorre observar é a hipersensibilidade das elites a tudo o que diz respeito a tais malévolos resquícios. Não vale chamar à actual transferência de posse uma segunda independência. Nem Cahora Bassa configurou nunca uma problemática idêntica à do Canal do Panamá ou do Suez. Nemnenhuma "Aida" se pavoneou pelo seu paredão.
Se a questão é a posse então há que analisar o que as elites fazem dela. Hoje, trinta e um anos depois da independência, o que se percebe é que as elites, na assumpção simbiótica do poder político com o económico, se apossaram por inteiro desse acto de posse, a que acrescentam um texto identitário sempre por oposição aos maléficos sinais do colonialismo. As elites lidam mal com a famosa "herança colonial". Falta-lhes a "dialéctica" de que tanto falaram noutros momentos.
No actual negócio houve quem não embandeirasse em arco, talvez por saber o que a casa gasta. Não queremos ser tão cépticos. Na encenação havida percebemos a agónica necessidade de símbolos de que o discurso do poder precisa.
Devido ao seu inamovível peso, Cahora Bassa teria desde o seu nascimento o desenlace que veio a ter. Sendo que este é o primeiro de uma série que agora começa.
Convocaram-se as massas e elas dançaram o zorre e o xigubo e o que lhes aprouve como sempre fazem quando a chamam ao palco. Figurantes exímias, nem ninguém lhes precisa de dizer onde se devem colocar no terreiro da festa.
Assumida a posse, por quem define o que é o "interesse nacional" - essa imensa página em branco onde se escreve tudo o que se quer - ao resto costuma outorgar-se uma fotocópia do alvará. Manda o discurso dizer que este foi o segundo documento. Não foi.
O que é preciso é rasgar-se a "outorga". Os actos notariais não cabem aqui.
Dando de barato a importância estratégica do que está em causa, acenando com um misto de alegria e alguma interrogação ao que vem aí, percebendo o lugar que lhe cabe no desenho simbólico que adeja ou se instila no céu de todas as esperanças, importa é o enquadramento todo.
Que este posse não seja possuída só por alguns. E que não se fragmente. Nem se esqueça, para citar Mutimáti, as caborinhas bassas que urge construir ou consolidar. A caborinha bassa da cidadania plena, por exemplo. Sem outorga.
SAVANA - 03.11.2006