Crónica de viagem
Humberto Lopes
Deixamos Tete e a picada segue o curso do Zambeze. Pequenas machambas nas margens, ilhas frequentadas por hipopótamos e crocodilos, um ou outro embondeiro em flor. Atravessamos aldeias, rios desidratados à espera das águas torrenciais do Verão austral, gente que acena dos bordos da picada, quase sempre velhos ou crianças, pandémico sinal dos tempos.
O primeiro indício de Boroma, uma das mais antigas missões jesuítas de Tete, província moçambicana encravada entre o Malawi, a Zâmbia e o Zimbabwe, é uma vaga ruína na distância, no topo de um cerro cercado de arvoredo. Ao lado do estradão, alguém lança a enxada à terra, debaixo de um sol inclemente. As temperaturas chegam aqui facilmente aos 45 graus, ou mais.
Entre árvores de tamarindo, num pequeno bosque denso no sopé do monte, o que foi uma loja, de paredes pardas, encardidas, acolhe um velho. Vende mangas à janela, a três meticais o quilo, menos de dez cêntimos de euro.
O caminho que falta é o leito pedregoso de uma via íngreme, delimitada por restos de passeio. As pedras soltaram-se há muito do pavimento e rolam debaixo dos pneus do todo-o-terreno que se esfalfa por trepar a ladeira.
Os edifícios da velha missão, fundada no século XIX, erguem-se no interior de uma muralha de pedra lavrada com ornatos de cruzes nos simulacros de torreões. A fachada da igreja avista-se de fora, através do espaço agora vazio do portão. É um frontispício pesado, austero, como que a querer intimidar pela via de uma autoridade mais terrena do que espiritual, dada a presença de duas torres de feição militar.
Tem uma história atribulada, a missão de Boroma. Poucos anos depois da fundação, a implantação da República trouxe más novas e condenou-a ao abandono. Reactivada mais tarde, a independência de Moçambique, em 1975, significou a nacionalização e apressou a ruína. Afinal, vendo bem, nem os diamantes são eternos, e tudo se converterá, num milénio qualquer, em pó.
Ao lado da igreja, um edifício de janelas decoradas com as cinco quinas hospeda uma escola agrária e não tem um aspecto muito católico. Há muito que não beneficia de obras mínimas de conservação e ostenta os sinais de um envelhecimento lento, mas firme. Lá ao fundo, o Zambeze desliza impassível, como os nacionalizadores, para o seu destino de delta.
O interior da igreja, o único espaço devolvido aos prévios proprietários, é um refrigério, com a sua luz pincelada pelos tons quentes das pinturas que decoram as paredes e o tecto com motivos geométricos e florais, tão frequentes, também, nas missões congéneres da América do Sul. O nicho de São José tem como guardiãs duas palmeiras e na talha do altar um azul turquesa brilha com um fulgor quase apagado, uma luz moribunda, simbólica, afinal, desta insólita sobrevivência no meio do mato.
A sacristia não tem porta. Abre-se um armário, atolado em cacos e restos mortais de mobiliário, e um presépio de belas figurinhas, desenhadas por artista hábil, parece por momentos disposto num palco eleito para toda a eternidade. Por momentos, apenas. O voo de dezenas de morcegos em pânico dentro do armário diz-nos que aquele canto do universo lhes pertence e que o presépio não é agora mais do que um detalhe do seu habitat de bichos das trevas.
PÚBLICO - 23.12.2006