A ESQUINA DO TEMPO
Por LUIS PATRAQUIM
"A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha/ com impossíveis naves moiras". Assim começa o poema de Rui Knopfli, sobre a Ilha Dourada, ou Muípiti, ou Ilha de Moçambique. O poema é datado de 1959. A ilha agonizava há muito e, no que fora uma das causas da sua relativa prosperidade na história, ainda bem. Ou não fosse essa riqueza vestida de panos oriundos de comércios ínvios, com a escravatura a sobressair.
Falo da Ilha, em ocasião noticiosa, quando leio que o Secretário de Estado português para a Cooperação, João Gomes Cravinho, a visita por estes dias. E projectos se anunciam. E verbas se aplicaram no restauro do património histórico. E porque se informa haver sinergias criadas com outros protagonistas.
Realço, sobretudo, a criação, pelo governo moçambicano, do Gabinete de Conservação da Ilha de Moçambique e da aprovação do Estatuto Específico para um dos poucos lugares em África que integra a classificação da UNESCO de Património Histórico da Humanidade.
Muípiti é da ordem do matricial, do simbólico, do histórico e do presente.
Bem o sabe a Associação dos Amigos da Ilha e o seu esforçado e teimoso dirigente, Luís Filipe Pereira.
Espécie de não-lugar por estigmatização de uma culpa histórica de que urgia ser resgatada, a terra de Orlando Mendes, Tereza Rosa d'Oliveira, Alberto de Lacerda, quase de Kalungano - que a avistou da sua infância no Lumbo, antes de haver ponte - Muípiti pode ser da ordem do futuro, se ao restauro se aglutinarem dinâmicas culturais e económicas. Com a complementaridade do continente: cabaceiras, Lumbo, mesmo o Monapo.
Agostinho da Silva, o profeta, quis fazer nela uma universidade, um jardim de Academos. E, quando lhe perguntei em que tradicionais instalações, referiu a árvore grande que por lá houvesse, o campo de São Gabriel ou o colmo labiríntico da ponta da ilha onde pulsa a vida e a mais íntima e plural identidade permanece.
Na ilha, só o futuro é que se pode esboroar. A sublime intemporalidade que a acaricia, as secretas vozes que sussurram na crosta ferida dos muros, a obstinação que se curva e se ergue no seu quotidiano parado, tudo, em Muipiti nos desafia.
A sonhar, bem sei, porque a sei também lugar logotéctico da poesia, raso parnasso no Índico, nela poderia acontecer o encontro de culturas, o festival internacional de poesia para que está naturalmente vocacionada. Na encruzilhada pregnante das línguas, na marginalidade superior que a poderia situar no centro ígneo da palavra.
De Caliban a Próspero tudo, hoje, nela pode ser da ordem da transfiguração.
Reedite-se a notícia em "outavas" que Manuel Saraiva Barreto publicou nos anos setenta. Ele, descendente directo do tipógrafo que trouxe o prelo para a cidade. Entre o Kansas, ou Londres, ou Lisboa, convide-se Alberto de Lacerda, Teresa Rosa D'Oliveira. E louve-se Alexandre Lobato, ressuscitando as suas monografias, a superior qualidade do seu texto. E outros tantos nomes. E louvemos a Bárbara escrava, os Gonzagas e os Bocages. Da Mesquita do Gulamo à Mesquita Grande, do Padre Lopes - monumento vivo - ao seu velho amigo e líder religioso muçulmano, infelizmente já desaparecido, tudo e todos, vivos e mortos - ou em levitação - devem ser convocados.
Porque que há um poema vivo a escrever na Ilha, com as suas gentes e a sua inumerável história. Um Festival, na Ilha Dourada.
SAVANA - 02.02.2007