Espinhos da Micaia
Por Fernando Lima
Não há muitos anos, hora de trabalho nos bairros periféricos era sinónimo de ruas desertas. Mas tudo mudou. Ociosidade e desemprego não diferenciam o movimento a qualquer hora do dia nas vielas poeirentas do subúrbio, espaço partilhado por montanhas de lixo e barracas coloridas com a música aos berros.
Era aqui que o presidente deveria ter feito o discurso dos preguiçosos, dos que levantam de manhã e já estão cansados, os que encostam debaixo da árvore ou na sombra da barraca.
Mas não foi. Foi na Zambézia, a província que já foi a mais rica do país. Pelas culturas de rendimento, pela agro-indústria, pela riqueza criada pelo trabalho assalariado. Pelo consumo de “whiskie” que era o mais elevado na província ultramarina. Pelo meio veio o dilúvio da guerra e os assalariados de outrora são os desempregados de hoje. Os filhos deles, que até foram à escola, gostariam de ter trabalho, mas nunca tiveram emprego.
Isso não é sinónimo de preguiça.
O sector familiar, o que o Estado assobia para o ar e faz que não vê, debitou colheitas recorde nos últimos dois anos. Num qualquer boteco mexicano as “quezadillas” são agora preparadas com milho “made in Mozambique” dos zambezianos, mas também dos camponses de Nampula e do Niassa.
Os tais preguiçosos mandam o seu milho – sem ficha de exportação registada pelos burocratas das estatísticas – para o Malawi. Umas vezes para matar a fome, outras vezes para alimentar as agro-indústrias rudimentares que os malawianos desenvolveram junto à longa fronteira que separa os dois países. Outras vezes ainda para fazer subir e baixar preços, especulação. Mesmo assim, é melhor exportar que ler notícias de cereais apodrecidos patrioticamente nos armazéns de Tete.
Os tais preguiçosos vendem o milho que as Nações Unidas utilizam para matar a fome aos súbditos do sr. Robert Mugabe, o regime que hipocritamente continua a ser apoiado pelos regimes da região.
Os preguiçosos da Zambézia poderiam matar a fome aos seus conterrâneos de Inhambane, de Gaza e Maputo, onde há bolsas de fome cíclicas. Só que os camponeses não podem substituir-se à rede de segurança alimentar, do mesmo modo que camionistas e comerciantes não se substituem ao instituto das calamidades, subsidiando o preço dos combustíveis e meios de transporte entre o Norte e o Sul.
Os preguiçosos da Zambézia têm um exército de bicicletas que compraram com o seu suor, que trocaram por milho, gergelim, feijão bóer. A bicicleta na Zambézia não é bicicleta, é camião. Podem baixar os vidros fumados dos 4x4 e ver os volumes incríveis que são empoleirados no veículo de duas rodas. Porque quase não há “chapa” entre Mocuba e Mugeba, entre Megaza e a Murrumbala, entre Chimuara e Mopeia, entre Mocubela e Pebane.
São os zambezianos que são força de trabalho em Marromeu e nas “farmas” dos zimbabweanos em Manica. Pelos melhores e piores motivos são os condutores e cobradores de “chapa” em Maputo, são vendedores ambulantes e empreendedores de “dumba-nengue”.
O problema não é a preguiça senão teremos que recuperar os velhos manuais sobre as técnicas do chibalo e o “imposto de palhota”, a porta de entrada para a salarização ou monetarização dos que teimavam em manter-se à margem da economia da modernidade trazida pelo colono.
O pessoal do campo precisa de estrutura e rede para produzir. Precisa de saber que o que produz é comprado, que pode produzir para comer em primeiro lugar e que pode cultivar também para o rendimento: gergelim, algodão, tabaco. O camponês precisa de ser sustentado pelo mercado e não pela subsistência que o transforma no elo mais fraco do ciclo de produção.
Que lhe dá o ferrete de preguiçoso.
SAVANA - 27.04.207