A minha opinião - Leite de Vasconcelos
Assim na terra...
Esta semana o mediaFAX completa 15 anos. Até à próxima semana vamos publicar textos emblemáticos deste jornal com história.Hoje segue o quarto, publicado no dia 01 de Julho de 1996
Há, em Moçambique, três grandes grupos religiosos:
animistas, muçulmanos e cristãos. Estes grupos estão destinados a viver juntos, a menos que algum ou alguns deles queiram utilizar a sua religião para dilacerar sem remédio o país.
Com justiça, deve dizer-se que os animistas não parecem envolvidos em qualquer conflito religioso. Ainda com justiça, não são graves os conflitos que, circunstancialmente, se têm manifestado entre cristãos (em particular os católicos) e muçulmanos.
Mas as relações entre católicos e muçulmanos parece assentarem em areias movediças. É evidente haver receios de parte a parte. Menos evidentes são as razões, algumas das quais se poderão encontrar na ascensão e relativo controle dos mecanismos comerciais do país por sectores económicos cujos agentes são muçulmanos e na percepção por parte de muitos de que, na corrida eleitoral, a Frelimo procurou o apoio desses sectores e, agora, o Governo está a pagar-lhes as facturas políticas. O protagonismo da Igreja Católica nas negociações que conduziram aos acordos de paz, a devolução de boa parte dos bens imóveis nacionalizados ou intervencionados após a independência e uma subida geral do tom de voz com que a Igreja tem vindo a intervir em questões económicas, sociais e políticas levam a que círculos muçulmanos tenham igualmente a percepção de que o Governo está pagando facturas políticas à Renamo.
Estas percepções podem ser incorrectas ou exageradas, mas o simples facto de existirem, mesmo que não reflictam a realidade ou toda a realidade, é um facto político de que decorrem consequências para as relações entre católicos e islâmicos. Se entre eles não existisse já um clima de desconfiança, resultante da suspeita de que os "outros" se estão atrelando ao comboio do poder contra "nós", seria pouco provável que a questão dos feriados provocasse reacções tão apaixonadas e radicais como, por exemplo, a do Cardeal D. Alexandre, quando manifestou o receio dum conflito sangrento entre crentes das duas religiões por causa dos feriados.
Os casos de polémica nos jornais entre muçulmanos e católicos tomaram-se mais frequentes. O problema não é que discutam, o que poderia ser saudável, mas que discutam o que e como estão discutindo.
Por exemplo, não vejo que se possa chegar a alguma conclusão relevante na discussão entre Fahed Sacoor e o padre Pagliara no SAVANA acerca de qual das religiões "produz" mais prostituição. Além das religiões e das regras de moral socia1 a elas ligadas, há tantos factores que contribuem para promover ou reduzir a prostituição, em situações tão diferencia- das social e culturalmente de país para país, que é praticamente impossível isolar a relação entre religião e prostituição. Nem me parece que determinar qual das religiões é professada em país com mais frequentadores de bordéis conduza a qualquer argumento válido acerca da superioridade dos princípios morais muçulmanos ou católicos. O argumento de Omar e Sacoor segundo o qual não se podem confundir árabes com muçulmanos (haverá árabes que frequentam bordéis, mas muçulmanos não) pode também ser invocado por um católico que queira dizer que, na Europa, por exemplo, são europeus não católicos os que utilizam os serviços da "profissão mais antiga do mundo".
Os restantes pontos do debate sofrem de idênticas puerilidades. O problema é que, com este tipo de polémica se estão construindo barreiras em lugar de pontes entre religiões e crentes. Muçulmanos e cristãos têm, nas suas doutrinas religiosas e nas suas teologias, muito em comum. Mesmo numa História dominada por guerras e conflitos (em que a religião foi, frequentemente, muito mais pretexto do que causa muçulmanos e cristãos prefilharam lugares e períodos de convivência e de colaboração. Em Moçambique, muçulmanos e cristãos têm em comum um país que precisa de todos para sair da miséria e da dependência.
Porque não fazerem na terra assim como acreditam que deve ser no paraíso?
MEDIA FAX - 25.05.2007