País do avesso
Primeiro, fomos entretidos.
Educados para um pensamento leve, acrítico, dócil. Amansados pela televisão e a revista do coração. Iludidos pela retórica e sem saudades da revolução.
Domesticados, deixamos de perguntar, questionar.
Manipulam e deformam-nos as opiniões. Quando as temos. Se as temos.
Elegemos e derrubamos governos, com doses generosas de impaciência, inocência e boa vontade.
Mas os poderes de facto jogam noutros tabuleiros, nunca escrutinados, com regimes e sistemas soprando a favor. E empréstimos abençoados.
Pedem-nos confiança, fé, crença.
Empenho, dedicação, esforço.
O País, os seus governantes, reclamam o melhor de nós. Nós reclamamos deles.
O Estado, outrora instituição respeitável, comporta-se como uma qualquer viúva-alegre. Entrega-se aos prazeres e tentações do mercado, passa vergonhas em público por causa de vícios privados e mania de jogo. Com as nossas fichas.
A Igreja olha o mundo com desconfiança e a pátria como feudo. Mesmo benzendo-se perante os desvarios dos novos tempos e templos, ainda põe a render o que resta da nação abençoada e temente a Deus.
Dignidade, respeitabilidade e ética são palavras com baixa cotação em bolsa. Os valores, outrora indispensáveis para manter uma aparente coesão social, hoje são relativos. Cada a um tem os seus e gere conforme as necessidades.
A honradez de um ofício está também no mercado. O meu lugar, a posição dele e o vosso cargo têm um preço. São usados para pagar o carro e resolver a vidinha. «E ninguém precisa de saber».
A perversão das palavras deu lugar a eufemismos para todas as bolsas. Temos de ser competitivos, flexíveis. Modernos. Em nome de um presente incerto e um futuro desconhecido.
As leis e a política fiscal, densas, protegem-nos de nós mesmos. Imagine-se o quanto nos tornaríamos perigosos se, na verdade, as conhecêssemos e soubéssemos usá-las.
Coagidos por políticas e decretos, refugiamo-nos.
Consumimos, compramos, exibimos. E assim existimos.
Vivemos a prestações para ter vida de princesas e os destinos de férias da realeza. Aos filhos, damos nomes de actores e modelos, sangue azul de telenovela. Sem pé-de-meia e arcaboiço para manter o conto de fadas.
Vemos, ouvimos e lemos as vidas que nunca teremos. Mergulhamos nas séries, nos folhetins, nos dramas reais e ficcionados. Somos parentes da criança morta ou raptada, choramos com amores de telefilme e histórias da carochinha. A viver a vida dos outros não nos angustiamos a pensar nas nossas. Nem nas demais, ao fundo da rua.
Somos navegantes solitários do mail, do messenger, do blogue. Fazemos travessias no deserto. Ainda que acompanhados.
Obedientes e humildes, incapazes de tomar o futuro pelas mãos, esperamos, enfim, à soleira da vida, que o tempo passe sem mais maleitas e martírios. O jantar está ao lume, a televisão já chama, a criança reclama.
Alguém disse que somos causa, condição e efeito das acções dos outros. Assistindo à nossa vida no sofá. Essa que não é mais do que telenovela de refugo, baixa audiência e maus actores.
VISÃO - 26.10.2007