Fuga para frente
Por R. Senda, R Jossai e A.Sengo
Esta semana o país viveu duas situações protagonizadas pelo Presidente da República, um nítido indício de que Moçambique está a ser gerido de improviso. É que, numa clara situação de fuga para frente, Armando Guebuza extinguiu a Autoridade Nacional da Função Pública (ANFP), cerca de dois anos após ter criado este órgão, e determinou a sua substituição por um novo Ministério da Função Pública.
A decisão de Guebuza pode ser interpretada como de antecipação a um pronunciamento do Conselho Constitucional (CC) relativo ao pedido da RENAMO para analisar a constitucionalidade ou não daquele órgão.
A RENAMO havia interposto um recurso junto do CC, pedindo a declaração de inconstitucionalidade do decreto que criou a ANFP, argumentando de que a Constituição não dá ao PR competências para a criação de um órgão com tal designação. O CC ainda não se pronunciou sobre o assunto, mas qualquer que seja o posicionamento será inconsequente, em virtude de Guebuza ter-se antecipado com a criação do Ministério da Função Pública, dentro dos seus poderes constitucionais.
Comissão Política
Na noite desta quarta-feira, a Comissão Política (CP), o principal órgão decisório da FRELIMO, dirigido pelo próprio Armando Guebuza, veio defender o que muitos, incluindo o SAVANA, já advogavam desde a aprovação da Constituição de 2004. A Constituição obrigava a realização das eleições provinciais três anos após a sua entrada em vigor, o que era um encargo para um país que depende em mais de 50 porcento da ajuda externa. Assim, o CP apelou à bancada da FRELIMO no Parlamento a submeter a este órgão um pedido de revisão pontual da Constituição.
Cartão vermelho
“Em face das queixas e preocupações públicas que as estimamos legítimas e pertinentes, tendo em conta a nossa Constituição e o Estado de Direito que cultivamos, decidimos reconsiderar a nossa decisão anterior, extinguindo a Autoridade Nacional da Função Pública e substituindo-a pelo Ministério da Função Pública”. Foi desta forma que Guebuza reconheceu o erro. A RENAMO aplaudiu o gesto e festejou a vitória, mas repisou que voltará à carga com vista a obrigar o PR a rectificar outras inconstitucionalides. Juristas contactados pelo SAVANA disseram que o PR mostrou que está aberto a críticas construtivas.
Segundo o Presidente da República (PR), o Ministério da Função Pública vai herdar toda a dinâmica criada pela ANFP, que consiste na implementação de reformas no sector público. Estas acções têm em vista a concretização dos compromissos assumidos com o povo que vão desde o combate ao burocratismo, espírito de “deixa-andar”, corrupção e criminalidade.
Quando vieram à superfície as primeiras inquietações sobre a inconstitucionalidade da ANFP, Gilles Cistac, da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), disse ao SAVANA, em Maio passado, que, do estudo que efectuou em torno da criação da ANFP, havia concluído que a instituição tinha uma base legal duvidosa, e que para repor a legalidade o PR tinha duas saídas.
A primeira consistia no PR revogar o referido decreto presidencial e, depois, aprovar outro decreto que cria, por exemplo, o Ministério da Função Pública e consagrar todas as competências que estão no decreto 2/2006.
A outra possibilidade era de o Governo solicitar uma autorização legislativa ao Parlamento para a aprovação da ANFP. Guebuza optou pela primeira opção.
Movimentações
Com a extinção da ANFP, Guebuza determinou também a exoneração da sua presidente, Vitória Diogo, nomeando-a ministra da Função Pública. Vitória Diogo é irmã da Primeira-Ministra, Luísa Diogo.
Outros membros da extinta ANFP foram compensados com a nomeação para vice-ministros. Assim, Maria José Lucas e Abdulrremane Lino passaram a vice-ministros da Função Pública, enquanto que Ana Paula Samo Gudo e João Kandyane Cândido passam a ter o mesmo estatuto nos Ministérios da Coordenação da Acção Ambiental e da Mulher e Acção Social, respectivamente.
Solicitado a esclarecer se com esta mudança não se tornavam nulos os actos tomados pela ANFP, Vitória Diogo disse que o que mudou foi apenas o nome e não as actividades, razão pela qual todas as decisões tomadas no tempo do anterior órgão transitam para o ministério.
Sublinhou que esta não é a primeira vez que se muda o nome de uma instituição, por isso não vê motivos para invalidar as deliberações da instituição ora extinta.
RENAMO jubila e avança para outras ilegalidades
Contactado pelo SAVANA, Ismael Mussá, deputado da RENAMO, referiu que, ao antecipar-se ao CC, o PR protagonizou uma fuga para frente com vista a evitar uma possível humilhação.
Mussá referiu que, até ao momento, a RENAMO ainda não recebeu a resposta do seu pedido ao CC sobre a matéria, mas que a reconsideração da posição do Chefe do Estado mostra que levou em conta as contestações do seu partido.
Para aquele parlamentar, o CC estava ciente desta ilegalidade, e Guebuza poderá ter sido alertado sobre o posicionamento ainda não público deste órgão.
“Ao antecipar-se do CC, o Chefe do Estado teve a oportunidade de repor por sua própria iniciativa a legalidade e a Constituição que ele jurou cumprir e fazer cumprir. Acabou passando apenas um atestado de incompetência aos seus assessores jurídicos e constitucionais”, disse Ismael Mussá.
Mesmo com a mudança de posição que culminou com a extinção da ANFP, Ismael Mussá diz que a sua bancada ainda aguarda pela publicação do Acórdão do CC, porque, na tentativa de remeter ao esquecimento o veredicto, dará prova de que este órgão não consegue manter a distância que se julga indispensável relativamente ao executivo.
“Estamos orgulhosos por ter contribuído para que o PR voltasse a respeitar a Constituição da República e permitir que o bom senso prevalecesse”, diz Mussá.
No entanto, Ismael Mussá referiu que, a partir deste alerta, espera que Guebuza tenha despertado e que procure regularizar todas as questões pendentes, porque, caso isso não se verifique, a RENAMO voltará à carga.
Mussá indicou algumas alegadas inconstitucionalidades cometidas pelo PR e que espera que venham a ser regularizadas nos próximos dias sob o risco de cair no mesmo embaraço.
Falou da exoneração dos procuradores-gerais-adjuntos, cuja questão foi longamente debatida na imprensa nacional e dos juízes-conselheiros do Tribunal Administrativo, recentemente nomeados pelo PR.
É que, no entender de Mussá, a indicação de juízes-conselheiros do Tribunal Administrativo é precedida de recomendações do Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa, e a lei que cria este órgão ainda não foi aprovada pela Assembleia da República.
Juristas aplaudem
Juristas contactados pelo SAVANA não concordam que o PR se tenha antecipado ao CC para evitar uma humilhação, mas que se apercebeu do erro e humildemente o rectificou.
Para Ossumane Aly Dauto, antigo ministro da Justiça e actualmente membro da Assembleia da República pela bancada da FRELIMO, o que o PR fez foi apenas o exercício das suas competências constitucionais.
Sublinhou que não vê motivos para temer humilhação e tudo o que se fala sobre isso é apenas um problema de concepção das pessoas.
“Usando os poderes constitucionais que a Lei lhe confere, o PR achou que tinha que criar um novo ministério, e isso não tem nada que ficar à espera das deliberações do CC”, disse.
Dauto procurou minimizar a importância do papel da RENAMO na tomada da decisão presidencial, sublinhando que a Lei confere prerrogativas ao chefe de Estado e ele agiu sob essas recomendações.
Dauto referiu que não há motivos para se revogar as deliberações da ANFP apenas pelo simples facto de o PR ter extinguido esta instituição.
Custódio Duma, advogado da Liga dos Direitos Humanos, alinhou pelo mesmo diapasão. Diz que nada impede o PR de alterar certas situações desde que tenha a certeza que está no caminho certo e nos limites que lhe são impostos pela Constituição.
Sublinhou que, ao extinguir a ANFP, o PR demonstra claramente que ou a ANFP não foi a melhor escolha para os fins que pretendia, ou que realmente a sua criação não foi dentro dos seus poderes.
“Penso que o PR mudou de ideia, porque percebeu que realmente a opinião pública estava correcta e que ele não estava certo. Está de parabéns pela humildade”, disse Duma, que nega que o facto de antecipar o CC signifique que esteja a fugir de uma possível humilhação.
“Ele está simplesmente a reparar o dano em tempo útil”, entende.
Referiu que, juridicamente, os actos praticados por uma instituição que neste caso seria inexistente dada a ilegitimidade da sua formação seriam nulos e não produzem efeitos.
Acha que mesmo que a instituição não exista, o CC deve pronunciar-se visto que é sua obrigação dar resposta a quem requereu e, ao não se pronunciar, estaria a furtar-se do seu dever e, ao mesmo tempo, a votar-se à incredulidade e desconfiança dos cidadãos.
Para o jurista e advogado Ilídio Macia, o PR é uma pessoa responsável, protegida pela Lei e que não precisaria de arranjar argumentos para evitar humilhações.
O que Guebuza fez foi apenas demonstrar que quando alguém erra deve reconhecer a sua falha.
Ao aceitar isso, acrescenta, o Chefe do Estado mostrou que é uma pessoa aberta, que aceita críticas e ouve outras sensibilidades.
“Embora seja obrigação do CC divulgar todas as suas deliberações, os argumentos da RENAMO não terão nenhum efeito, porque a instituição em causa já não existe”, frisou.
Ilídio Macia sublinhou que as deliberações da ANFP podem transitar para o Ministério da Função Pública até à data da sua extinção, porque o CC ainda não tinha tomado decisão sobre o pedido da sua inconstitucionalidade.
SAVANA - 19.10.2007
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