Toda a gente quer aprender algo de novo e gosta de partilhar aquilo que constitui o seu “eu” (...)
ESTIVE há semanas em Lisboa, a caminho de Cabo Verde. Vendo a RTP, chamou-me a atenção um “spot” institucional em que o Presidente Cavaco Silva dizia mais ou menos “os Portugueses não estão a ter filhos; O que podemos fazer para que os Portugueses e as Portuguesas tenham mais filhos!?” Achei graça, e falando ao telefone com alguns dos meus estudantes, contei-lhes o episódio.
“Oh! Professor, não seja problema. Mandem as Portuguesas cá pr’Angola e nós resolvemos o problema delas...” responderam.
Eram rapazes, como é óbvio. Algumas meninas, sobretudo dos primeiros anos – graças a Deus, estão a mudar – talvez contemplassem ir para lá e fazer os filhos para os Portugueses.
Diriam que é uma questão de sedução...
Dias depois, durante a capacitação que estava facilitando em Praia, tornei a contar o episódio, desta vez a um grupo misto de mulheres e homens caboverdianos de classe média alta.
“Eh! Dred, arranja corpo expedicionário de 50 Cabo-verdiano p’ra emprenhá Portuguesa! Trêis mês, num mais, cumpádi” diziam os homens, entre a risada geral. As senhoras, essas riam-se à sucapa e nos olhos –
marotos, e lindíssimos também – entrevia-se que não compreendiam como é que os Portugueses não sabiam o que tinham de “fazer” para fazer filhos...Este episódio – caricato e real – ilustra a crise que a Europa, a Oceania e a América do Norte, o chamado Primeiro Mundo atravessa quanto a valores existenciais
fundamentais. Aquelas sociedades estão em crise profunda – eles mesmos já reconheceram – porque foi
corrompida, no sentido biológico do termo “apodrecida” a sua espinha dorsal: a Família. Os pais “casam-se” e “divorciam- se” como quem troca de roupa, os filhos são deixados por conta de estranhos e “educados”
pela Televisão, a INTERNET e os vídeogames, porque a principal preocupação dos progenitores é fazer dinheiro e mais dinheiro, vencer a competição cada vez mais impiedosa.
Os jovens crescem sem este calor do exemplo do amor entre os pais e dos pais, e aos 16 anos eles também já sentem a necessidade de ser independentes.
Vai dali, alugam um apartamento, arranjam um trabalho “part-time” e entram na corrida. Quando se lembram de constituir família, estão já na casa dos trinta anos e nesta altura já nem sempre ainda resta o vigor físico e o romantismo psicológico necessários para “fazer” amor e gerar filhos.
Quando chegam aos 50-60 anos, começam a arrepender-se, mas já é tarde. Os filhos – se os têm – estão mais preocupados em colocá-los no hospício mais próximo. E acabam assim os seus dias, na amargura e na solidão.
Os africanos, pelo contrário, ainda mantêm a estrutura familiar firme, apesar da pobreza e dos outros problemas. Os mais velhos, aqueles que se prezam, assumem a responsabilidade de educar e orientar os mais novos nos caminhos da vida, independentemente do grau de parentesco. “Da boca de um mais velho pode sair um dente podre, nunca uma palavra podre”, diz um ditado popular em Angola. As famílias – alargadas, já que a nuclear está inserida num sistema do tipo patriarcal – tem um código de direitos e deveres mútuos baseados na solidariedade: A hospitalidade, a responsabilidade e ajuda mútuas, o respeito, a partilha irrestrita e até mesmo a aliança para a vida e para a morte. É consabido que se você fizer mal a um africano, incluindo matá-lo, terá que se haver com toda a sua família. A tal dívida de sangue.
Também é comum vermos órfãos a serem recolhidos em outras casas para terem uma melhor educação e orientação.
Muitos estudantes no exterior são apoiados, quando não mesmo custeados, pelo esforço conjunto de pais, tios, primos, etc, muitos deles com proventos humildes. Isso faz dos africanos na diáspora uma comunidade que, a par dos asiáticos, é encarada cada vez com mais respeito – e alguma inveja também – pelas sociedades dos países hospedeiros.
Um dos valores mais apreciados nos africanos na diáspora é o seu instintivo respeito pelos mais velhos.
Em cada país, há sempre aqueles mais velhos de referência para os quais as pessoas olham em busca de conselho e orientação, ainda que apenas pelo exemplo.
Mesmo entre os jovens, os que chegam primeiro assumem naturalmente a responsabilidade de ajudar os que chegam depois.
Aqueles que constituem família logo arranjam um grupo de “os filhos de casa” que não raro vêem naquela casa o refúgio seguro contra as vissicitudes da vida... e o lugar para um bom funge no fim de semana e matar as saudades da terra. Assim, aquela família constitue-se num pólo de inspiração e o seu chefe é naturalmente respeitado até quase à veneração por esses jovens.
Este, em troca, assume uma postura que pelo exemplo cumpra essa missão instintivae não imposta de orientação pedagógica. Este é um dos pilares de sustentação das comunidades africanas e angolanas no exterior.
E os governos dos países ditos desenvolvidos já perceberam isso, e estão a utilizar os africanos para rejuvenescer e remoralizar as suas sociedades. “As características de obediência, capacidade de sacrifício e espírito de equipa torna os africanos em excelentes alunos e trabalhadores”.
Até a sua capacidade de apreciar com alegria as coisas pequenas que a vida oferece, assim como a fortitude nos momentos menos bons, faz deles pessoas “steady and dependable”. A sua capacidade de cultivar e ser fiéis a relacionamentos sociais, ainda que inter-culturais, faz deles pessoas atraentes, uma vez que se vença o preconceito e desconfiança iniciais” li com interesse num artigo de uma revista europeia.
Por isso vemos cada vez mais africanos e angolanos a casarem-se com cidadão e cidadãs dos países acolhedores e ali constituírem sólidas famílias. E quando um africano casa, regra geral é para fazer filhos, uns dois ou três pelo menos. Certamente pela arte no acto, as europeias e americanas contribuem no processo com entusiasmo. São conhecidos os casos em que africanos e africanas não permitem que os sogro(a)s saiam de casa cuidando deles até à sua morte por ser essa a sua cultura, algumas vezes mesmo contra a vontade do(a) cônjuge.
Os africanos – e os angolanos também – têm todos os motivos para orgulhar-se desta sua herança cultural.
Alguns, infelizmente, no afã de integrarem-se mais rapidamente ou por qualquer outro motivo inconfesso renegam os seus valores identitários, apressando-se a serem “mais Romanos que os Romanos”.
E ei-los a criticar os seus próprios valores, atacando a família, violando o respeito pelos mais velhos, a veneração pelos mortos. Esses nossos compatriotas não se apercebem o quanto são ridículos e envergonham os seus. Porque acabam não sendo nem peixe nem carne, acabam mais cedo ou mais tarde ostracizados por todos os lados: de onde saíu e para onde queria ir. A cultura dos valores identitários próprios e o seu cruzamento com outras culturas é um dos traços mais atraentes de uma personalidade.
Toda a gente quer aprender algo de novo e gosta de partilhar aquilo que constitui o seu “eu”. Tenho visto bastantes exemplos disso entre os angolanos na diáspora, o que quase sempre enche-me de um grande consolo. Mesmo as coisas menos boas. Os dos outros países pensam que se os angolanos são os mestres das festas da amanhecida com kizomba e kuduru (quem diria...!), gente alegre e solidária, trabalhadora, sacrificada e religiosa, são também os maiores gabarolas e exagerados do Mundo.
Conheci há pouco uma jamaicana casada na Inglaterra com um sobrinho que quando visitou o Talatona e o Belas Shopping ficou literalmente bwamada! É que pelas descrições que lhe tinham feito os amigos do marido, pensava tratarem-se de construções do género do World Trade Center antes do 9/11. Jamais pensou que era um centrozinho comercial menor que o do seu bairro em Londres...! Claro que ri-me a valer da cara dela. Por ela e por todo(a)s que se juntaram à família mwangolé, vai então este artigo para que se orgulhem de si mesmos e dos valores que os nossos antepassados nos transmitiram.
É assim que, minha África, meu amor, teus valores meus amores, rezo a Deus que te preserve assim. Que adquiras a riqueza e prosperidade que mereces, mas não percas a tua raíz. E abençoe Deus Todo-Poderoso os nossos na diáspora.
Protege-os do Mal e que que regressem à Casa ainda Nossos, couraçados com a Sabedoria de que o nosso
Desenvolvimento está tão faminto.
Amém.
Pretória, 5 de Janeiro de 2008.
Celso Malavoloneke * - O OBSERVADOR - 14.01.2008