A onda de linchamentos que está a abalar a Beira (centro), segunda maior cidade de Moçambique, resulta do "cansaço" dos cidadãos perante a ineficiência das autoridades no combate ao crime, na opinião de analistas ouvidos pela Agência Lusa.
Apenas este ano, sete pessoas foram espancadas e carbonizadas até à morte por populares nos subúrbios da Beira, que os acusam de práticas de diversos crimes, entre roubos e assassínios.
O sociólogo e professor universitário Carlos Serra, que está a coordenar uma pesquisa em Maputo sobre os linchamentos - prática pioneira da chamada "justiça pelas próprias mãos"- identifica nela "sintomas de cansaço da população perante a ineficiência da polícia".
"Nos questionários às pessoas, a resposta mais ouvida tem sido: ´estamos fartos, estamos cansados de ser roubados´. Na Beira, também ouvi um ancião a dizer o mesmo", afirmou Serra.
A frustração sentida pelos cidadãos perante a incapacidade do aparelho estatal de combate à delinquência levou já à "privatização da justiça", com os populares a chamar a si a acção punitiva de "pessoas suspeitas ou culpadas de crimes", constata o estudioso.
"Por hipótese, admite-se até que há bandos que estão a especializar-se no linchamento de supostos criminosos, como acontece no Brasil e noutras partes da América Latina, devido ao sentimento de que o Estado se demitiu de uma das suas principais funções: providenciar a segurança das pessoas e bens", sublinhou Carlos Serra.
A "geografia dos linchamentos" remete a incidência deste fenómeno para áreas suburbanas de menor presença policial, falta de iluminação, altas taxas de desemprego, residências sem segurança e agregados familiares numerosos superiores a cinco elementos.
"Nas cidades, onde a presença de sedes de instituições relevantes obriga a uma redobrada vigilância da polícia e da segurança privada, não temos os linchamentos", apontou Serra.
Quanto à colocação de um pneu no pescoço da vítima de linchamento, o sociólogo diz "que a cultura do pneu na capital do país levou a que se lhe descobrisse mais uma função: combustível para a queima de ladrões".
"Analisei o que chamo de cultura de pneu em Maputo e verifiquei que este elemento está presente na maioria das casas nos subúrbios de Maputo, às vezes como vedação, às vezes como brinquedo para crianças e até como matéria-prima para calçado. De repente, as pessoas olham à volta e dão se conta que tem também combustível, para incendiar o seu próximo".
O "necklacing" (pneu à volta do pescoço) tornou-se prática comum de linchamento nos bairros degradados sul-africanos durante o regime de segregação racial, constituindo muitas vezes a pena que eram condenados por "tribunais do povo" os membros da comunidade negra acusados de colaborarem com o regime de "apartheid".
Para o jurista António Madure, radicado na Beira, as circunstâncias em que acontecem os linchamentos nesta cidade demonstram a ausência de autoridade nos subúrbios da chamada segunda capital moçambicana.
"Todo o ritual que se desenrola nos linchamentos, desde a captura da vítima, espancamento, por vezes até antecedido por algum interrogatório, o pneu que se coloca à volta do pescoço da vítima, e o ateamento do fogo não levam menos de 45 minutos, o que numa situação normal permitiria que a polícia evitasse esse tipo de vingança privada", disse Madure.
"Quase em regra, quem aparece depois de consumado o linchamento são agentes da polícia comunitária (escolhidos entre cidadãos dos bairros para fazer a vigilância nocturna) a acudir à situação. Nos casos raros em que é a polícia do Estado, esta chega tarde e nunca a tempo de evitar o pior", enfatizou o jurista.
António Madure diz que a fúria popular está a ser aproveitada por algumas pessoas para fazerem ajustes de conta com supostos criminosos.
" Nos linchamentos, há um grave risco de se matarem inocentes e parece que já temos esses casos aqui na Beira. Há fortes dúvidas em relação à conduta das últimas vítimas. Ninguém esclarece se de facto eram malfeitores", sublinhou António Madure.
Ao invés de resolver o problema do crime, alerta Madure, a chamada "justiça popular" piora a insegurança no seio das pessoas, porque, "por azar, qualquer cidadão de bem pode ser confundido com bandidos, basta gritar "mbafa" - ladrão numa das línguas faladas na Beira.
NOTÍCIAS LUSÓFONAS - 18.02.2008