Lide Lidima
Por Afonso dos Santos
Considera-se geralmente que um dos pilares da democracia é a separação de três poderes: o legislativo, o executivo e o judicial. Entretanto, tenho algumas dúvidas acerca da relação do poder judicial com a democracia. A primeira questão diz respeito à independência desse poder. Qualquer poder é sempre exercido por pessoas. E não pode haver qualquer independência do poder judicial, se este for exercido por pessoas que actuam como servos, que se dedicam a lamber as botas dos donos do poder político, tendo como objectivo obterem privilégios económicos e sociais.
Também não pode existir independência do poder judicial, se este for exercido por indivíduos que se identificam com os interesses dos donos do dinheiro – sendo também, eles próprios, poderosos donos do dinheiro e de propriedades –, e que usam o poder judicial para servir esses interesses.
Mas há uma outra questão: se os juízes se considerarem como sendo eles a própria lei, se considerarem que as suas decisões são a lei e não uma interpretação da lei, se o poder judicial estiver acima da própria lei, porque ninguém controla as suas decisões, tudo isto constitui uma grave atrofia da democracia. Tenho a suposição de que a ampliação da democracia exigiria uma instância de poder à qual os juízes teriam que prestar contas da sua actuação, quando isso fosse necessário, tal como acontece em relação aos médicos, os quais estão permanentemente sujeitos a terem que prestar contas sobre as consequências dos seus actos profissionais.
Um outro problema respeitante às questões do poder, na democracia, é que sempre que o poder económico se sobrepõe ao poder político, isso é um factor que atrofia a democracia. Significa que os governantes actuam como empregados dos donos do dinheiro, ou são estes mesmos – os que são os donos do dinheiro – que são também os donos da política.
Abusa-se, por vezes, de comparações mais ou menos inapropriadas com o mundo do futebol, mas, neste momento, não consigo fugir a uma comparação: numa democracia subjugada pelo poder económico, acontece como no futebol: quem ganha o campeonato são os clubes, neste caso os partidos, que têm mais dinheiro.
O combate pela ampliação da democracia deverá, portanto, ter como objectivo que o poder económico esteja subordinado ao poder político.
A amplitude e o carácter – progressista, conservador ou reaccionário – duma democracia deverão ser definidos tomando como base de análise a observação sobre quais são as classes sociais que exercem o poder. E o que se pode observar é que, nos regimes democráticos actualmente existentes, o poder é exercido pela burguesia, e que tem como seus aliados algumas outras camadas sociais privilegiadas. As classes trabalhadoras, por sua vez, são completamente afastadas do exercício do poder. É neste contexto que me parece inteiramente apropriado e válido designar este tipo de democracia, hoje prevalecente no mundo, como “democracia burguesa”. As características da burguesia não são certamente as mesmas de há um século atrás, mas ela continua a ser definida como a classe que possui os meios de produção dos bens materiais e de produção de serviços e os meios do comércio.
Para defender os seus interesses de classe, a burguesia cria e – através dos órgãos de informação de que é proprietária e do sistema de educação que controla – propaga a sua ideologia de classe.
A grande manobra ideológica da burguesia consiste num malabarismo de raciocínio através do qual ela designa todas as formas de pensamento que exprimem os interesses de outras classes sociais como sendo ideologias, dando a esta palavra a conotação negativa de alguma coisa que não reflecte a realidade. A burguesia, em todo o mundo, procura fazer crer que só as ideias que exprimem os seus interesses de classe é que não são ideologia, são uma espécie de verdade absoluta ou divina – esta ideia é precisamente um dos conteúdos principais da ideologia burguesa.
Outro conteúdo permanente da ideologia da burguesia é o de que não há luta de classes. Os seus ideólogos tentam inclusivamente negar que as classes sociais existem, ou, se o aceitam, negam que estas tenham interesses divergentes, e declaram que uma análise que tome como base a luta de classes é uma visão ideológica. Entretanto, a ideologia burguesa, para tentar despistar, introduz a manhosa noção de parceiros sociais.
Um terceiro conteúdo primordial da propaganda ideológica burguesa consiste em fazer crer que todas as outras ideologias pertencem ao passado e já não têm validade. Os intelectuais defensores dos interesses da burguesia gostam de usar vocábulos como “saudosismo”, “ideias datadas” (quer dizer, pertencentes a uma época que se foi e não voltará mais) e outros vocábulos que pretendem exprimir uma análise supostamente modernista. O objectivo é nítido: é preciso criar desânimo, é preciso desencorajar qualquer vontade de transformação.
No entanto, para a construção duma democracia mais ampla, não existe outro caminho que não seja retomar as ideologias progressistas desenvolvidas por ilustres personalidades revolucionárias no passado, e dar continuidade ao combate, que vem desde há séculos, pela construção de sociedades que tenham como fim essencial a felicidade do homem e não a maximização do lucro, que visa criar uma riqueza brutal (portanto, violenta) de uma pequena espécie de estranhos seres com forma biológica humana. Não há outra solução que não seja dar continuidade às lutas do passado, e que são, por isso mesmo, precisamente lutas do presente. Este é um combate entre a preservação da espécie humana e a sua degradação.
SAVANA - 15.02.2008