António Botelho de Melo
As gerações mais jovens que hoje estão aqui connosco, mais de metade das quais nasceram muito depois dos eventos abaixo referidos, pouco ou nada sabem deste projecto, inerente à construção do Edifício Nacional, que foi a introdução do Metical em Moçambique, algo extremamente delicado e sensível, como aliás foi observado quando se introduziu o Euro em partes da União Europeia há cerca de três anos, sendo que aquando da introdução do Metical, não havia praticamente qualquer aparato em termos de meios logísticos, de comunicações, e informáticos que apoiaram, neste caso, a mudança para o Euro.
Foi uma ocasião que ninguém que passou por ela esquecerá, em que se destacou uma enorme capacidade organizativa e participativa, extremamente sigilosa, gerida na altura a partir da direcção do Partido Frelimo e do Governo, por forma a que fosse reduzida ao mínimo a chance insucessos da operação.
Houve autênticas epopeias de sacrifícios consentidos pelos jovens na época e velhos de hoje, muitos deles que já não vivem. Hoje é interessante falar das várias fases ou frentes do processo que nortearam a operação do Rovuma ao Maputo e como tudo foi desencadeado noutras partes do País.
Na altura, quantas histórias não se ouviram. O impacto em toda a população, a nível nacional, foi enorme. O pânico dos que guardavam as suas poupanças nos colchões, os sacos e sacos de dinheiro para trocar e como reagiram ao processo, os constrangimentos psicológicos, a sua abordagem no processo de troca nos balcões da banca nacionalizada, tudo isso todos sentiram na pele.
Em Tete, por exemplo, a troca e a recepção de todos os Escudos e entrega de Meticais provindos das equipas constituídas, foi feita a partir da Cidade de Tete. Esta operação foi do conhecimento antecipado do Gerente da Filial de Tete. Havia apoios por forma a organizarem-se equipas a serem integradas nas brigadas distritais chefiadas maioritariamente por Directores Provinciais do BM. A coordenação da operação a nível nacional envolvia o Governo, a Administração do Banco de Moçambique, o Serviço Nacional de Segurança Popular e a Força Popular de Libertação de Moçambique.
No dia 15 de Junho 1980, um domingo, foram convocados e concentrados em locais pré-definidos todos os elementos das equipas para estudo dos documentos e impressos a serem utilizados no período da troca de moeda. Uma tipografia escolhida para a produção dos impressos foi selada com os operários lá dentro pela tropa durante dois dias, tendo os empregados que dormir no chão, as suas famílias ansiosas pelo que se passava. As restantes pessoas convocadas não tinham conhecimento prévio do que se passava e a apreensão sentia-se naturalmente. Havia tropa por todos os lados para proteger os valores em circulação e a logística. À meia-noite desse domingo, dia 15 de Junho de 1980, todos ouviram na emissão nacional da Rádio Moçambique o discurso do Presidente, Samora Machel à Nação, em que se revelou o objecto das movimentações. Samora Machel formalmente decretou o fim de circulação da moeda em Escudos e a introdução do Metical como moeda de circulação nacional.
A designação da moeda - o Metical - deriva do nome de uma moeda de troca utilizada nas transacções entre as populações em partes de Moçambique algumas centenas de anos antes (aparentemente uma pitada de ouro aluvial enfiada na parte oca de uma pena de ave).
Findo o anúncio presidencial (formalizado nas Leis 2 e 3/80) foram então dadas as instruções a todas as equipas. Durante a noite, fizeram-se os preparativos.
Seguramente, dormiu-se mal nessa noite.
Às sete horas da segunda feira seguinte, dia 16 de Junho de 1980, arrancou o processo junto das populações, algumas das quais haviam sido avisadas previamente pelas estruturas locais da Frelimo. Todas as brigadas estavam já no terreno (nas cidades, distritos, localidades) já prontas para a operação, que consistia em trocar, nos caixas e nos locais de troca, apenas o equivalente, em Meticais, de cinco contos. Assim, cinco mil Escudos de Moçambique colonial (Moçambique tinha as suas próprias notas e moedas, diferentes de Portugal “continental”) dava cinco mil Meticais - que, por tradição, o povo continuou a até hoje a chamar “cinco contos”. Para os restantes Escudos que as pessoas tinham em sua posse, era passado um recibo de entrega do valor, que seria creditado em conta após averiguação da sua proveniência, o que em muitos casos era assunto considerado muitíssimo problemático para quase toda a gente com algum dinheiro, dadas as circunstâncias sociais de “vigilância revolucionária” e possibilidade de acusações de sabotagem, traição, etc. O saldo na conta do titular era automático.
Naturalmente que houve imensos problemas. Houve pessoas, principalmente comerciantes mais abastados da diáspora asiática, que mandavam os seus empregados e familiares trocarem os tais cinco contos, como forma de contornar as restrições e não dar nas vistas. Houve brigadas que, à boleia de carroças de bois com sacos de dinheiro, enfrentaram animais selvagens, leões e elefantes principalmente. Houve o caso de dois cidadãos em Angónia que morreram de ataque cardíaco porque não se recordavam aonde haviam enterrado o seu dinheiro. Houve sacos de dinheiro novo esquecido nos comboios em Mutarara e que acabaram sendo resgatados na Beira. Houve desvios, algumas pessoas penalizadas pelo aproveitamento ilícito da situação.
No entanto, consideraram-se satisfatoriamente concretizados os três grandes objectivos estratégicos: trocar a moeda sem grande impacto no quotidiano das populações, evitar-se a introdução de moeda falsa no processo de troca, e retirar-se a capacidade de manobra a indivíduos ou grupos considerados opostos ao processo em curso e supostamente detentores de vultuosas quantias em notas do tempo colonial, que estariam a utilizar em esforços de desestabilização (o sucesso aqui foi relativo: pouco depois o governo de Ian Smith entregava via Lancaster House o poder a Robert Mugabe e a África do Sul já na era do “Grande Crocodilo” - Pieter Willem Botha - passou a apoiar esses esforços, com as consequências que se conhecem).
Nessa altura houve muita gente boa que, a troco de nada, e face às dificuldades que então havia, aderiram com evidente sentido de patriotismo nesta que foi uma das operações pós independência mais sigilosas, bem organizadas e provavelmente mais bem sucedidas.
Exactamente um ano depois, em 1981, o General Alberto Chipande, em farda militar solene, liderou uma cerimónia simbólica do “enterro” do escudo colonial, incinerando perante uma audiência e um fotógrafo da “Tempo”, uns largos maços de notas de Escudos dentro de um caixão - que hoje, ironicamente, renderiam dezenas de milhares de Euros nas feiras numismáticas em Portugal.
E assim se fez um pouco a História
SAVANA - 18.06.2004
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