Por Susana Marques
em Norwich
“Os três melhores escritores africanos, no mesmo lugar, ao mesmo tempo”, Karen Boswall, cineasta britânica, está boquiaberta.
J.M. Coetzee, o Nobel sul-africano, desaparece silencioso, degraus acima. Acaba de se cruzar com Mia Couto e José Eduardo Agualusa, na entrada da residência da Universidade de East Anglia, onde estão hospedados os três escritores e outros convidados do encontro de literatura de Norwich, New Writing Worlds.
Mesmo que não valesse a pena por mais nada, já tinha valido a pena por isto – é um privilégio estar num festival onde estão três dos melhores escritores africanos contemporâneos.
José Eduardo Agualusa e Mia Couto ainda parecem um pouco surpresos por estar aqui, há dois dias num campus todo verde, onde os esquilos substituiram-se por coelhos e o lago está cheio de patos.
É possível que a natureza tenha alguma coisa a ver com o facto de Mia Couto e Agualusa estarem agora aqui – neste momento, a sentarem-se num banco dedicado a alguém que já morreu, de frente para o lago, a ver passar a tarde no campus verde de East Anglia.
“O Mia Couto tem uma segunda actividade como biólogo”, explica Agualusa. “Muito daquilo que ele é enquanto biólogo ele transporta para a escrita.”
Mas também Agualusa escreve sobre a natureza, responde Mia Couto. Para o escritor moçambicano, todos os escritores africanos escrevem sobre natureza. É esse o contributo que África pode dar ao debate internacional sobre o tema. “É preciso interrogar o que é esta coisa de natureza”, sugere Mia Couto.
Natureza aqui, na Europa, não é a mesma coisa que lá, em África. Aqui, basta olhar em redor – os caminhos pelo parque cuidadosamente delineados, a paisagem como uma vista para se apreciar desde a janela -, a natureza é algo “separado”, “autónomo”.
“Nas línguas de Moçambique e de Angola não há palavra para dizer esta coisa que aqui se chama natureza”, lembra Mia Couto. “Há uma palavra que diz tudo, que diz de uma maneira holística, este conjunto de coisas.”
A natureza e a relação da natureza com o humano é sem dúvida a razão para o New Writing Worlds ter trazido aqui Agualusa e Mia Couto, porque é esse o tema do festival.
Mas a razão dos escritores, a mais importante pelo menos, é mais simples: estar perto dos leitores.
Há livros fresquinhos em inglês dos dois escritores nas livrarias: de Mia Couto, “A Rivel Called Time” (“Um Rio Chamado Tempo”), e de José Eduardo Agualusa, “My Father’s Wives” (“As Mulheres do Meu Pai”).
Eles estão aqui só para isso. Para, daqui a pouco, estarem com os seus leitores ingleses.
Quem é quem?
Uma rapariga avança de mão e sorriso estendido: “Estou encantada em conhecê-lo, Mia.” O homem levanta-se, aperta-lhe a mão e com o sorriso mais charmoso que se possa imaginar, responde: “O prazer é meu, mas eu não sou o Mia. Sou o José Eduardo Agualusa. Ele é o Mia”, aponta para o lado. Mia Couto confirma.
A rapariga desfaz-se em desculpas. “Não se preocupe”, acalma-a Agualusa, “Já estamos habituados”. E Mia Couto volta a acenar com a cabeça.
A cena quase se repete com Amanda Hopkinson, do Centro de Tradução Britânico, que vai apresentar a sessão. Hopkinson dirige-se a Agualusa: “Como é que prefere que o chame: José ou José Eduardo?” “Mia”, brinca Mia Couto.
A New Writing Partnerships podia ter previsto, ou não, que os escritores se dariam bem. Talvez não imaginasse que seriam inseparáveis.
Com o humor de Laurel e Hardy, irresistível como Gene Kelly e Fred Astaire, é uma dupla invencível que avança pelo meio das obras de arte do centro de artes Sainsbury da universidade de East Anglia.
Foram postas meia dúzia de filas de cadeiras no meio das esculturas mas brevemente é preciso acrescentar mais uma fila e mais outra e mais outra.
A sessão está cheia.
Depois de Amanda Hopkinson ler excertos da versão inglesa de "Um Rio Chamado Tempo", de Mia Couto, é a vez de “My Father’s Wives”, o último romance de Agualusa.
Veio uma personagem do próprio livro para o ler. Karen Boswall – que foi com Agualusa de Angola à Ilha de Moçambique, numa viagem que deu origem a “As Mulheres do Meu Pai”.
Boswall lê-se a si própria a dialogar sobre gostos estranhos: tromba de elefante, e até, sereias.
A sessão terminou com outras histórias, num ping-pong entre José Eduardo Agualusa e Mia Couto. Histórias para explicar, por exemplo, que o realismo mágico com que os ocidentais teimam em classificar as suas obras, são muito mais realistas do que imaginam.
Já ouviram a história da mamba, a grande serpente, que vivia num palácio governamental e cantava o hino de Moçambique? Nada de ficção, pura verdade, matéria de notícia de jornal.
Da galeria para o café, as histórias continuaram. Era só sentar à mesa de José Eduardo Agualusa e Mia Couto.
E aquela do macaco e do peixe? É assim: Era uma vez um macaco...
BBC - 24.06.2008