Malas de cartão
Os dias parecem normais, mas depois do sol-posto Joanesburgo é uma cidade de recolher obrigatório. Aqui vivem 120 mil portugueses. E quem tem medo? Compra um cão.
Casas tapadas por muros com arame farpado e avisos de que a segurança se faz através de 'resposta armada' são uma constante nos arredores de Joanesburgo. Desde que cheguei, há três dias, e me instalei em Bramley, só consegui sair do hostel por duas vezes. Na excursão paga ao Soweto e quando fui ao supermercado. Não que tenha visto cenas de violência ou sentido animosidades racistas, mas cada vez que pego na mochila e penso em aventurar-me pelo centro da cidade, todos me avisam da inconsciência. Por ser mulher e por ser branca.
Aguento a prisão enquanto tento contactar a influente comunidade portuguesa, cerca de 120 mil residentes em Joanesburgo e quase meio milhão em toda a África do Sul. Não está fácil. O vice-presidente da Casa da Madeira não tem tempo para mim, do consulado responde-me uma irritante pré-gravação e no jornal 'Século de Joanesburgo' ninguém atende telefones. Ao quarto dia tomo uma decisão radical e saio sorrateiramente pela manhã como se fosse de novo ao supermercado.
É a cantarolar, inebriada pela liberdade, que entro no táxi colectivo, carrinha sem vidros onde se amontoam pessoas. É verdade que sou a única branca, mas ninguém me liga nenhuma. A não ser Joaquim, motorista moçambicano, que ri quando, por causa de uma travagem, bato com a cabeça no banco da frente e profiro palavras pouco católicas: 'A pula aleijou-se?' pergunta.
Eu não. E ele? Alguém o agrediu há dois meses quando rebentou a violência xenófoba contra os emigrantes ilegais vindos dos países vizinhos? 'Tiraram os móveis para a rua e fizeram muitas perguntas, mas deixaram-me fugir com a família para casa de um parente'. Do outro lado de Alexandra, a cidade-satélite onde vive há 15 anos. 'A sorte foi ter os papéis', diz encolhendo os ombros e comentando que viu um homem em chamas no meio da rua.
Depois de mudar duas vezes de transporte, saio imaculada em Sandton City, um dos oásis comerciais da metrópole. Além de liberdade, procuro portugueses. Há 15 anos, antes da transição para a democracia multi-racial, teria sido fácil encontrá-los no centro de Joanesburgo onde se registava uma forte presença lusitana, ao ponto de existir uma zona designada por Rossio. Hoje, o Belém, o Nicola e a Lusoglobo deram lugar a uma parafernália de 'boutiques' de roupa chinesa e indiana cujos proprietários são somalis, nigerianos e etíopes, tendo os portugueses sido 'varridos' para os subúrbios.
Jorge Limões, 33 anos, não é desses tempos. Chegou há uma década para trabalhar na empresa de construção de um familiar e depressa se habituou ao estilo de vida luso-sul-africano. Moradia com jardim e guarda privado, carro de alta cilindrada, churrascadas : 'Se cumprirmos as regras, conseguimos viver sem problemas'. Para trás ficaram os dias de torneiro mecânico na Trofa, onde 'não passava da cepa torta', e um dos seus grandes amores, o Futebol Clube do Porto: 'Vamos ver se Portugal se qualifica para o Mundial da África do Sul em 2010, apoio não lhes vai faltar.'
A presença de portugueses nestas paragens tem muitas páginas de História, mas a grande vaga de emigração deu-se a partir dos anos 60 do século XX, altura em que, sobretudo, os madeirenses descobriram no país do apartheid um insuspeito Eldorado. São vários os casos de empreendedores descapitalizados que aqui chegaram com pouco mais que boas intenções tendo amealhado fortunas que hoje estão no top nacional, como Joe Berardo ou Horácio Roque. E raras serão as cidades ou vilas sul-africanas em cujas esquinas não existe um café baptizado 'Madeira', 'Funchal', ou simplesmente 'Maria'.
Com a independência de Angola e Moçambique, em 1975, ocorreu uma segunda vaga de emigração. Forçados a abandonarem estes países, milhares de 'retornados' viram na África do Sul a oportunidade de recomeçarem do zero, ajudados pelos compatriotas que já aqui viviam. Assim se cimentaram novos laços comunitários e formaram clubes e colectividades que ainda perduram e que servem de âncora 'nos tempos difíceis'. Como os que se seguiram ao fim do regime do apartheid, quando muitos foram acusados de pactuar com a política racista do governo. Ou, mais recentemente, quando se deu uma escalada de violência contra proprietários brancos de estabelecimentos comerciais (cerca de 350 portugueses mortos até 2005): 'Os assassinatos não são dirigidos à comunidade portuguesa em especial, acontece que têm lojas mais vulneráveis a este tipo de criminalidade num país com desigualdades sociais em que os brancos ainda são os maus da fita', diz Jorge.
Nada que o intimide. Nem a mim, apesar do alívio que sinto no dia seguinte ao deixar para trás Joanesburgo, o arame farpado e os cães de guarda, com mais uma certeza adquirida. Para mim, não há fortuna que valha a liberdade.
Patricia Brito - CORREIO DA MANHÃ(Lisboa) - 27.07.2008