Lide Lidima
Por Afonso dos Santos
Há pessoas que manifestam a sua surpresa – e, noutros casos, decepção, indignação, dúvidas – pelo facto de que muitos governos africanos não quiseram condenar o regime fraudulento e ditatorial mugabiano. Há mesmo quem se interrogue se os líderes africanos “pensam em repetir a estratégia nos seus países” (Frederico Congolo, O País, 18.Julho.2008). Parece que isso se torna evidente, porque essa recusa de condenação significa que se trata de regimes da mesma natureza.
Isto levanta a questão seguinte, que é a de tentar perceber como é que as lutas de libertação vieram a dar origem a regimes destes. Ora, à luz destas realidades do presente, parece ser mais adequado designar essas lutas como guerras de conquista (dos recursos nacionais), e não como lutas de libertação dos povos. As independências dos países africanos não libertaram os povos da exploração, da opressão e da miséria. Parece que isso está à vista de toda a gente. O período histórico que se seguiu ao colonialismo tem sido, até agora, o período do neocolonialismo. É este o tal “período histórico” actual, ao qual algumas figuras gostam de se referir, para justificarem o enriquecimento por via do roubo e da corrupção. Aos governos coloniais seguiram-se governos neocoloniais, que seguem políticas de venda dos recursos nacionais às antigas potências colonizadoras, e que são sustentados pelos governos dessas potências com todo o tipo de financiamentos e doações. Por isso essa governação neocolonial é sempre elogiada pelas potências ex-coloniais – e, agora, neocoloniais – como sendo casos de sucesso e de “boa governação.”
Será que tudo isto significa que as independências nacionais foram um mal? Não. O neocolonialismo constitui, apesar de tudo, um progresso histórico em relação ao colonialismo. Abre novas condições para que os povos prossigam a sua luta rumo a uma segunda independência futura.
Convém ter em mente que a História não segue juízos morais. Há um ponto de vista sobre a História que defende o seguinte: quando surgiu a sociedade esclavagista, após a sociedade primitiva e antes da sociedade feudal, a escravatura representou um progresso para a Humanidade. E porquê? [Note-se que não se trata, neste caso, da escravatura da era colonial] Na sociedade primitiva, os inimigos, na luta pelo acesso aos recursos, eram simplesmente mortos. Não eram feitos prisioneiros. Quando se desenvolveu a produção e passou a haver excedentes, e quando o conhecimento se tornou mais avançado e já permitia realizar construções, os inimigos passaram a ser feitos prisioneiros, para passarem a ser utilizados como força de trabalho. Isso representou, nessa época, um enorme progresso, porque a vida dos seres humanos passou a ser poupada; os prisioneiros deixaram de ser mortos.
Também o neocolonialismo constitui um progresso em relação ao colonialismo, porque as classes trabalhadoras passam a poder confrontar directamente o explorador e opressor interno. Durante o período da dominação colonial são coincidentes os interesses dos pequenos senhores feudais da sociedade tradicional, os interesses da pequena burguesia autóctone e os interesses dos camponeses e do reduzido operariado existente. Mas após a tomada do poder, tudo muda radicalmente, iniciando-se um processo – que dura alguns poucos anos após a independência – no qual a aristocracia da sociedade tradicional feudal e a pequena burguesia interna se aliam entre si e se organizam para derrotarem a influência dos interesses das classes trabalhadoras e imporem o seu (das chamadas “élites”) poder político e económico sobre as camadas sociais produtoras de bens materiais.
A aspiração da pequena burguesia é sempre a de se tornar grande burguesia. Mas isto não chega a ser uma burguesia, uma vez que não produz riqueza através da sua iniciativa privada e investindo os seus próprios fundos privados. Utiliza o Estado como sua propiedade pessoal. Por esta razão, é também um grupo social bastante inculto, com um nível de cultura geral abaixo do medíocre, e, por isso, investe intensamente na promoção da mediocridade. A causa disto é que, uma vez que o enriquecimento é feito à custa do assalto ao Estado, e os lugares são ocupados por via de laços de família e de amantismo, não é necessário criar conhecimento e capacidade. Basta ir vendendo o país, e inventar títulos e rótulos: “académicos” p’ráqui, “empresários de sucesso” p’ràcolá, “auto-estima” e blá-blá.
Há um outro progresso muito relevante que resulta da primeira independência: é a libertação do racismo e o acesso à dignidade como ser humano. Só miúdos com ganância de luxo, e que têm a inteligência localizada na cor da sua pele, em vez de estar localizada no cérebro, só miúdos desses é que podem vir dizer que existe racismo actualmente em Moçambique. Que existem racistas, esses miúdos são o melhor exemplo disso. Mas este facto não pode ser confundido com a existência duma sociedade racista.
Na fase histórica do colonialismo, os povos colonizados, apesar de poderem admitir que nem todos os brancos são exploradores, no entanto identificam a exploração com essa cor da pele, e não sabem que os negros podem ser tão exploradores e opressores como os brancos, porque os povos ainda não viveram essa experiência histórica. Só descobrem isso na fase do neocolonialismo pós-independência. Mas essa descoberta é muito lenta, porque a nova classe dominante negra usa de todos os malabarismos políticos e mentiras para alimentar expectativas – sempre frustradas –, fingindo que vai combater a corrupção e a consequência desta: a pobreza das classes trabalhadoras e dos desempregados.
A fase actual do neocolonialismo é, por conseguinte, a fase historicamente necessária para o desenvolvimento da luta pela segunda independência.
SAVANA - 25.07.2008