EDITORIAL
Finalmente foi dado o primeiro passo para a resolução da crise política, económica e social que se vive no Zimbabwe há quase dez anos.
Com a assinatura do memorando de entendimento comprometendo a Zanu-PF e as duas facções do MDC a negociar um acordo, parece finalmente ter sido compreendido pela classe no poder no Zimbabwe que a situação no país era demasiado insustentável.
Resta ver se no prazo de duas semanas será possível sanar todas as diferenças que opõem a Zanu-PF e os seus principais opositores.
Como o dissemos há umas semanas atrás, o primeiro passo para a solução de qualquer conflito é que as partes nele envolvidas reconheçam a existência do conflito. Também é essencial que elas se reconheçam mutuamente como partes conflituosas. Em último lugar, mas não tão menos importante, é que elas tenham a capacidade de identificar de forma clara as causas do conflito.
Desde que o conflito emergiu nos finais da década de 90, abrindo caminho para o surgimento do Movimento para a Mudança Democrática (MDC), em 1999, a Zanu-PF, o partido no poder, sempre se recusou a aceitar que as causas do conflito eram orgânicas, preferindo manter a posição cómoda — e fácil de vender a analistas menos atentos — de que se tratava de diferenças entre os governos zimbabweano e da Grã-Bretanha, devido à recusa deste último em assumir as suas responsabilidades coloniais de financiar o programa de redistribuição de terras.
Na verdade, o conflito é menos externo do que interno. Que o memorando de entendimento tenha sido assinado em Harare, e não em Londres, é a maior prova que se pode ter desse facto.
É um conflito que se pode dizer que teve o seu primeiro marco mais importante em 1997, quando uma vasta coligação da sociedade civil, envolvendo o movimento sindical, confissões religiosas, jovens, mulheres, a comunidade empresarial e organizações dos direitos humanos, decidiram fundar uma frente ampla para exigir a elaboração de uma nova constituição que congregasse valores mais profundos da democracia, e que desconcentrasse aquilo que era visto como sendo excessivos poderes investidos no Presidente da República.
Na verdade, e por irónico que pareça, a constituição do Zimbabwe era a mesma que tinha sido aprovada em Lancaster House, e que o governo tinha emendado várias vezes, na maior parte das quais com o objectivo de atribuir funções executivas a um Presidente da República que na concepção originária era de carácter cerimonial.
Este movimento em torno da nova constituição, denominado Assembleia Nacional para a Constituição (NCA), elegeria Morgan Tsvangirai para seu presidente. Tsvangirai já era Secretário Geral da Confederação dos Sindicatos do Zimbabwe (ZCTU), cargo para que havia sido eleito (e reeleito várias vezes) desde 1988. Antes tinha sido secretário executivo do Sindicato da Indústria Mineira.
Em Dezembro de 1997, o Zimbabwe foi assolado por uma greve geral que paralisou o país durante três dias. A greve viria a repetir-se em Janeiro de 1998, tendo como principal motivo de protesto o crescente custo de vida. Antes, Tsvangirai tinha feito vários pronunciamentos advertindo que o Programa de Reajustamento Económico (ESAP), adoptado pelo governo em 1990, com o apoio do FMI, do Banco Mundial e dos principais países ocidentais, só poderia resultar num maior empobrecimento para a maioria dos zimbabweanos.
A sistemática recusa do governo e da Zanu-PF de manter um diálogo construtivo com todas as forças vivas da sociedade conduziu inevitavelmente ao surgimento do MDC, em Outubro de 1999, na sequência do Congresso do Povo, realizado em Bulawayo, e que exigiu que Tsvangirai aceitasse a inevitabilidade do surgimento de um partido político inspirado no movimento sindical.
O surgimento do MDC foi seguido de um referendo sobre a nova constituição, a qual, sob intensas pressões, a Zanu-PF havia relutantemente concordado em elaborar, mas preservando as mesmas cláusulas fundamentais que eram contestadas pela NCA.
O referendo teve lugar em Fevereiro de 2000. O voto contra a nova constituição foi tão expressivo que foi correctamente interpretado pela Zanu-PF como uma manifestação da insatisfação popular à escala nacional, que poderia ser repetida nas eleições parlamentares que haviam sido marcadas para Junho do mesmo ano.
A pouco mais de quatro meses da realização das eleições, a possibilidade de a Zanu-PF vir a ser destronada do poder por um partido recém-nascido era mais do que uma mera questão académica. Isto provocou pânico no seio do partido no poder.
A resposta foi uma decisão tomada na primeira reunião do bureau político da Zanu-PF logo a seguir ao anúncio dos resultados, dando ordens aos veteranos de guerra para ocuparem propriedades agrícolas supostamente pertencentes a brancos. O assunto da terra é de uma sensibilidade especial para a maioria dos zimbabweanos, e o objectivo principal desta decisão era ver ser seria possível desviar as atenções de uma grande maioria de opositores incautos.
Sabia-se que nenhum país do Ocidente, incluindo a Grã-Bretanha, ficariam indiferentes a tamanhos atropelos das próprias leis zimbabweanas. Aí surgiu a oportunidade de projectar o conflito como opondo o Zimbabwe e o Ocidente, com a Grã-Bretanha, a inconformada antiga potência colonial, na dianteira.
Quando a estratégia provou ser infrutífera, a violência foi a estratégia mais eficaz a que se recorreu para impedir que o MDC lograsse a inédita proeza de ir para além dos 57 de um total de 120 assentos que obteve no parlamento. Estes são os factos que explicam a génese da crise zimbabweana. O resto é fantasia.
O diálogo que esta semana teve início constitui uma histórica oportunidade de reencontro da família zimbabweana, num debate sério e sem preconceitos sobre aquilo que deve ser o futuro do país. É algo que todos devemos encorajar.
SAVANA - 25.07.2008