HUMBERTO LOPES
E sempre assim na hora da chegada do voo de Lisboa ao Aeroporto Osvaldo Vieira. Miúdos, jovens e mais velhos empurrando-se para oferecer os muitos serviços que estão a fazer falta aos recém--chegados.
Quase se atropelam nas ofertas: levar a bagagem, arranjar taxi para o centro de Bissau, ir procurar quem veio esperar, vender cartão telefónico, caju ou mancarra, adiantar sugestão de hotel. Naquele dia primeiro do mês de Fevereiro, tinha diante de mim um garoto muito insistido:
-Amigo, dá-me esse jornal!
Apontei para o PÚBLICO dobrado e metido na bolsa da mochila e respondi com firme convicção que ainda não tinha lido nada, nada mesmo, mas que fazia tenção de ler. O miúdo não estava disposto a desistir. Teimou:
-Não vais ter tempo de ler. Dá-me lá o jornal!
-Vou ler, sim.
-Não, não vais ter tempo de ler!
Falou assim mais vezes, pelo menos cinco ou seis, sempre o mesmo solitário argumento. Não vais ter tempo de ler.
A edição do PÚBLICO do primeiro dia de Fevereiro continuou no mesmo sitio durante duas semanas inteiras, a acumular poeira. A mochila rolou mais de mil quilómetros entre Bissau, Zinguinchor, Banjul e uns
quantos matos mais ou menos anónimos em redor do grande rio Gâmbia. Atravessou várias vezes as fronteiras do Senegal, da Gâmbia e da Guiné.
De vez em quando o jornal abria--se, soltava uns gramas de poeira avermelhada, eu folheava as páginas sem atenção, de olhar perdido nas entrelinhas, à procura só de nada.
Semanas depois, era uma tarde de sábado em Bissau, na penumbra-refrigério do quarto n.° 8 da Pensão Central, sobrou tempo para leituras. Mas a bolsa da mochila estava vazia. O PÚBLICO de l de Fevereiro tinha ficado a amarelecer no impossível bafo de Bafatá.
Quando o calor fingiu abrandar, desci ao Ponto de Encontro, pastelaria lusitana, para a liturgia do café. Caminhei ao longo do Estádio Lino Vieira e reli na parede, pela enésima vez, firmadas intenções ou declaração delas. O "slogan" tanto me pareceu versículo marxista como programa adaptado dos compêndios neoliberais: "Responder às necessidades dos jogadores". Tinta desbotada sobre um fundo cariado.
Na esplanada, esperei pelo café, meio mareado pela retórica globalizada.
- Amigo! Está aqui o jornal!
O rapazola exibia vários jornais dentro de um saco de plástico, um deles era o PÚBLICO da véspera, dia do voo semanal Lisboa-Bissau. Empreendedorismo guineense: os jornais são solicitados aos passageiros, à chegada, e depois vendidos em locais estratégicos.
Olhei para a edição fresca e as notícias da primeira página soaram-me repetidas, parecidíssimas com as das semanas precedentes. Talvez o Lévi-Strauss tivesse razão: nada acontece de verdadeiramente relevante no planeta desde há uns bons milhares de anos...
-O PÚBLICO quanto custa?
-Dois mil e quinhentos "fran".
É a lei da oferta e da procura. Não há outro sitio, outro tempo ou outro modo de comprar jornais em Bissau. Mas dois mil e quinhentos francos CFA aí uns quatro euros!
-Faz lá abatimento no preço, amigo. Com esse dinheiro quase dá para ir de candonga até Bafatá e voltar a Bissau. E, no final das contas, essas noticias que estou a ver ai parece que são sempre as mesmas...
-Amigo, essas noticias são novas de ontem. E é melhor comprar este mesmo. Se fores a Bafatá, depois não vais ter tempo de ler o jornal...
PÚBLICO - 28.09.2008