Alegado Envolvimento de Orlando Cristina não Bate Certo com os Factos
"O livro-bomba é montado na Beira. É levado da Beira para o Consulado Geral de Portugal, no Malawi, em que estava Jorge Jardim e outro funcionário que acompanhava sempre Jardim, que era o senhor Orlando Cristina". – Sérgio Vieira, in Savana, 18 de Fevereiro de 1994
As já conhecidas alegações de Sérgio Vieira, reiteradas na edição de 8 de Fevereiro último do semanário Domingo (Sobre os 40 Anos Depois de um Crime), não coincidem que a realidade dos factos. Segundo Sérgio Vieira, a encomenda-bomba que vitimou Eduardo Mondlane teria sido transportada da Beira para Blantyre por Orlando Cristina. Na óptica de Sérgio Vieira, aquele que viria a ser o primeiro secretário-geral da Renamo estaria ligado à PIDE/DGS, tendo participado na operação visando o assassinato de Eduardo Mondlane. Será que de facto foi assim?
É por demais conhecida a propensão de Sérgio Vieira para deturpar os factos e inventar situações como forma de criar versões que não condizem com a realidade. Não obstante a Interpol ter apurado que as pilhas utilizadas na montagem da encomenda-bomba terem sido exportadas pela fábrica Hitachi, do Japão, para a Casa Pfaff, sita na Rua Joaquim Lapa, n°5, na então Lourenço Marques, Sérgio Vieira declarou ao Savana (edição de 18 de Fevereiro de 1994) que “as pilhas que activaram a deflagração [...] faziam parte de um lote de pilhas japonesas que foram enviadas e comercializadas na cidade da Beira”. O objectivo de Sérgio Vieira visa, claramente, provar o envolvimento de Orlando Cristina, já que à altura do assassinato de Mondlane ele residia na Beira.
A realidade, porém, é que Orlando Cristina não era da PIDE/DGS, o que põe em causa o seu alegado papel de portador da encomenda-bomba, tal como sustenta Sérgio Vieira. Nem mesmo a ida de Cristina para a Tanzânia logo a seguir à fundação da Frelimo constituiu uma operação de infiltração do movimento de libertação engendrada pela PIDE. Na altura, Orlando Cristina colaborava com a Segunda Repartição do Estado-Maior General das Forças Armadas Portuguesas em Nampula. Criada pelo Coronel Costa Matos, a Segunda Repartição tratava da recolha e análise de informações, o equivalente à chamada Inteligência Militar das Forças Armadas de Moçambique.
Cristina alega que fugiu para Dar-es-Salam devido a problemas com licenças de caça, e não no âmbito de uma missão secreta visando infiltrar a Frelimo. Durante a sua estada em Dar-es-Salam denunciou às autoridades tanzanianas a presença de agentes da PIDE no seio da Frelimo. Ao regressar, desiludido, a Moçambique, Cristina é preso como desertor das Forças Armadas Portguesas, o que não coincide novamente com a alegação de ter ido à Tanzânia enquanto ao serviço da PIDE. É Jorge Jardim que consegue retirar Orlando Cristina da cadeia, evitando que fosse julgado em Tribunal Militar. Foi a partir dessa data que Cristina passa a colaborador de Jorge Jardim, entrando até em choque com a PIDE.
O Atentado Contra Brás da Costa
Um ano antes do assassinato do primeiro presidente da Frelimo, Orlando Cristina sofria ameaças veladas por parte da polícia política do regime colonial. Um episódio comprovativo deste facto desenrolou-se em torno do atentado contra Brás da Costa.
Brás da Costa era um comerciante português que vivia em Lichinga. Tinha cantinas em diversas localidades da província do Niassa. Durante a luta pela independência nacional, guerrilheiros da Frelimo frequentavam com regularidade os estabelecimentos comerciais de Brás da Costa, em busca de géneros e medicamentos.
Apreensivo com esta situação, Brás da Costa entrou em confidências com Orlando Cristina, cujo pai era também comerciante no Niassa. Brás da Costa conta a Orlando Cristina o dilema em que se encontrava: se denunciasse a presença dos guerrilheiros às autoridades coloniais, elas acabaria por montar uma cilada aos combatentes da Frelimo, matando-os ou capturando-os. E em retaliação, a Frelimo saquearia as suas lojas ou então matá-lo-ia numa emboscada. Mas se não informasse as autoridades, Brás da Costa achava que mais tarde ou mais cedo seria preso por colaboração com o "terrorismo".
- Como me safar desta alhada?, indagou Brás da Costa na conversa tida com Orlando Cristina.
Cristina, que na altura estava ligado a Jorge Jardim como agente dos Serviços Especiais de Informação e Intervenção (SEII), aconselhou Brás da Costa a não informar nem a PIDE nem a tropa colonial. Numa condição: que o mantivesse a ele, Cristina, informado de todas as visitas que os guerrilheiros da Frelimo efectuassem às suas lojas e cantinas. Assim, raciocinava Cristina, a presença da Frelimo na zona, as suas movimentações e áreas de infiltração para sul e outros planos passariam a ser melhor interpretados.
Dito e feito. Passaram-se meses e a PIDE apercebe-se da situação. A PIDE alerta o exército, mas este, ao par das intenções do SEII, em virtude de ser uma unidade das próprias Forças Armadas Portuguesas faz ouvidos de mercador. A PIDE irrita-se e decidi que tem entre as mãos um “traidor à Pátria”, alguém que “colabora com os turras” da Frelimo. Opta por um ajuste de contas. Prepara, na delegação da Beira, um encomenda-bomba endereçada a Brás da Costa. Corria o ano de 1968.
Brás da Costa não suspeitou de nada ao receber a encomenda na então cidade de Vila Cabral, pois tratava-se de mais uma remessa da revista Paris-Match que lhe chegava às mãos, como assinante que era. Ao abrir a encomenda, porém, dá-se uma explosão e Brás da Costa fica sem os dois membros superiores, para além de ter contraído outros ferimentos graves. Sobrevive, e é tratado numa clínica na Europa.
Muito embora a PIDE tivesse posto a circular na colónia o boato de que fora a Frelimo a autora do atentado, Jorge Jardim, que na altura se encontrava em Portugal, suspeita que algo de estranho se passara. Em mensagem gravada expedida por portador para a Beira, Jardim pede a Orlando Cristina para que “proceda a investigações pormenorizadas para se apurarem as causas do atentado contra a vida do meu empregado, Brás da Costa.”
Diligente, o “comissário político” de Jardim, como este denomina Orlando Cristina no seu livro de memórias, Moçambique Terra Queimada, depressa vem a saber que a encomenda fora expedida de Tete. Do que conseguiu apurar junto da funcionária dos CTT (Correios Telégrafos e Telefones) naquela cidade, a pessoa por ela descrita como tendo entregue a encomenda ao balcão dos correios era da Beira e ligada à PIDE.
Antes que Cristina aprofundasse as investigações, a PIDE chama-o à sua delegação na Ponta Gêa. O inspector da PIDE que dialoga com Cristina a páginas tantas vira-se para ele e diz-lhe, calmamente,:
- Senhor Cristina, não subestime os métodos da PIDE.
Cristina compreendeu o alcance do recado que lhe acabara de ser dado, pondo termo às investigações de carácter privado que vinha encetando por ordens do seu ídolo e anjo-da-guarda, Jorge Jardim.
Com a conquista da independência, Brás da Costa continuou no Niassa, florescendo na actividade que vinha desenvolvendo já desde a época colonial. As suas relações com o novo poder estabelecido em Moçambique aprofundar-se-iam. Governadores, altos quadros do partido e outros responsáveis do regime faziam questão de bater à porta de Brás da Costa em Lichinga. O próprio Samora Machel viria a enaltecer o papel desempenhado pelo comerciante do Niassa durante a luta armada. A Frelimo, por via da Comissão Permanente da Assembleia Popular, conferiria uma medalha àquele cidadão português pelo apoio prestado à causa da independência nacional, considerando-o um herói.
Jardim Negou Envolvimento na Morte de Eduardo Mondlane
Os pormenores em torno do atentado de que Brás da Costa foi vítima permitem estabelecer que existe uma clara contradição entre a realidade dos factos e a versão apresentada por Sérgio Vieira quanto ao trajecto da encomenda-bomba que viria a causar a morte ao primeiro presidente da Frelimo. Em que fontes se apoiou Sérgio Vieira para fazer tais alegações? De que dados concretos dispõe?
O mesmo se poderá questionar em relação ao alegado envolvimento de Jorge Jardim na montagem e envio da encomenda-bomba através do consulado português no Malawi. Do que se sabe a respeito desta alegação de Sérgio Vieira é que Jorge Jardim negou qualquer envolvimento. No referido livro de memórias, Jardim afirma que “quando o Dr. Eduardo Mondlane (por quem o Dr. Banda tinha sincero apreço) foi assassinado, preparava-se o Presidente do Malawi para promover o nosso encontro. Não o quisera fazer mais cedo por duvidar da minha preparação para isso. Por tudo, tive a maior pena em que esse crime houvesse sido cometido. Só faltava que, anos depois, me viessem a acusar de o ter planeado".
É tempo da Frelimo trazer a público os relatórios oficiais da investigação do atentado bombista que vitimou Eduardo Mondlane, dando a conhecer aos cidadãos as verdadeiras circunstâncias da sua morte. A História de Moçambique não pode andar à mercê de fantasias e manipulações. (Redacção)