José Luís Cabaço foi convidado, na última segunda-feira, pela Universidade Politécnica para proferir uma palestra subordinada ao tema “Discursos e Imagens de Samora Machel em tempos de Mudanças”, onde logicamente falou da história recente do país. À margem dessa palestra, aceitou conceder uma entrevista ao “O País” onde, o antigo jornalista, activista político e ministro de Informação do governo de Samora Machel, fala da sua exeperiência revolucionária vivida na Frelimo. Primeiro, como movimento libertador e, depois, como força dirigente do Estado.
Nesta entrevista e longe da política activa da qual se desligou há 19 anos, Cabaço diz estar magoado com algumas forças externas que procuram a todo custo denegrir a imagem de Samora Machel e do seu legado. A título de exemplo, Cabaço diz que há “portugueses retornados” que estão envolvidos nessa campanha negra contra o fundador da nação.
Para além dos retornados, Cabaço critica as declarações do primeiro embaixador soviético em Moçambique, Piotr Evsiukov, que publicou um livro sobre a sua experiência em Moçambique no qual acusa Samora de se ter comportado como Staline em relação à população branca portuguesa. Tem a palavra José Luís Cabaço.
Dr. Cabaço,...a figura de Samora continua a suscitar acesos debates nos círculos académicos. Para uns, ele foi um verdadeiro herói que defendeu a causa do seu povo até às últimas consequências. Mas há outros que acham que Samora não passava de um “papagaio” que se limitava a ler discursos que não eram por ele escritos...
Não é verdade que as pessoas tenham pensado assim antes. A verdade é que a partir de um determinado momento, quando houve intenção de denegrir a personalidade carismática de Samora, esse discurso começou aparecer.
Na sua opinião, quem está por detrás dessas campanhas negras contra a figura do presidente Samora...?
Não sei quem são as pessoas que lançam esses boatos. Não há dúvida de que é uma acção organizada. É um discurso que tem eco numa contestação à figura de Samora e aos valores que este representa. Sei que é uma história com vinculação internacional que muitos “portugueses retornados” estão associados. Os primeiros grandes detratores de Samora foram os “portugueses retornados” que pelos vistos voltaram à carga.
Acha que existe uma acção deliberada de deturpar a obra de Samora?
Sem dúvida alguma. Esse Samora que tem sido veiculado por aí não tem nada a ver com a vida e obra de Samora.
Trabalhou com ele. Como era Samora?
Samora é o fundador de Moçambique, da mesma forma que, Mondlane foi o fundador da Frelimo e da unidade nacional. Esta é uma marca indelével da sua exiestência e vida. Pessoalmente, Samora foi a pessoa mais intusiasmante e decisiva que conheci na vida. Foi a pessoa que mais influência exerceu sobre mim
“Embaixador da ex-URSS em Maputo era um idiota”
Esse Samora bom que nos descreve não é partilhado por muitos. Há sectores, principalmente na academia, que põem em causa a obra de Samora.
Por exemplo, que acham que Samora foi um ditador e autoritário....
Primeiro, é preciso contextualizar o tempo em que Samora governou este país. Foi num período de guerra e bastante difícil. Eu diria que era uma imagem autoritária. Diria que não tanto a imagem do tirano ou ditador, mas sim do autoritário. Nos últimos dois ou três anos da sua vida e com o agravamento da guerra, exigiu da parte de Samora uma modificação dos métodos do seu trabalho que eram essencialmente de estimular o trabalho colectivo. Apartir desse momento, Samora começou a não ter tempo para o colectivo e foi tomando decisões intempestivas e imediatistas que foram assumindo um cariz autoritário.
Uma das medidas mais marcantes na governação de Samora Machel foi, sem dúvida, a “operação produção”, cujo objectivo oficial era de levar pessoas tidas como desempregadas e delinquentes pelos líderes da revolução para centros de reeducação localizados nas províncias de Niassa e Cabo Delgado, mas que acabou sendo uma tragédia. Quase 30 anos depois, qual é a análise que faz desta acção...
Eu acho que foi um grande erro. A “operação produção” foi um exemplo de procurar resolver um problema através de uma forma errada de materializar esse objectivo. Era uma operação extremamente delicada que teria exigido grande preparação. Foi um grande erro.
Na ocasião era ministro. Teve oportunidade para expôr a sua ideia sobre a mesma?
Sob essa questão não. Tive oportunidade de expôr as minhas opiniões sobre outras questões. Havia o centralismo democrático e nós tínhamos direito a emitir as nossas opiniões no partido. Se eu discuti alguma questão foi no partido do que no governo.
O primeiro embaixador soviético em Moçambique, Piotr Evsiukov, publicou um livro sobre a sua experiência em Moçambique no qual acusa Samora de se ter comportado como Staline em relação à população branca portuguesa:
Não concordo com a visão dele. Conheço bem esse embaixador. Aliás, contei uma história dele num prefácio de um livro que escrevi sobre a biografia de Samora. Devo dizer que Samora tratava-o com bastante respidez por causa do seu comportamento discutível. As declarações dele mostram de facto que era um idiota. O problema era em torno do tratamento a dar à situação rodesiana ou sul-africana. E nós tratamos de resolver esse problema no primeiro momento, onde deixamos claro quem estava no poder. Logicamente, os brancos que estavam no poder não gostaram de ser desalojados.
Mas, a história reza que a Frelimo tratou muito mal os brancos que estavam em Moçambique nos primeiros anos após a independência....
Não é verdade. Os portugueses abandonaram o país porque não aguentaram com a nova realidade.
E a famosa medida 20/24 que consistia em expulsar brancos num espaço de 24 horas com apenas 20 kg de bagagem?
Foram casos pontuais. Quantas pessoas foram expulsas....? 100, 200, 1000? não foram expulsas. A grande maioria fugiu porque não aceitou o novo governo liderado pela Frelimo.
Acha que a história um dia vai absolver Samora Machel e a Frelimo pelos erros do passado?
Samora e a Frelimo cometeram erros. Isso é indiscutível. Mas os erros foram também cometidos depois de Samora. Qualquer governo comete erros. Se há um grande sucesso na vida de Samora foi a derrota do colonialismo e a instalação da independência. Por isso, Samora e a Frelimo não têm por que serem absolvidos. Quem deve ser absolvido pela história são os portugueses que a devem compreender realmente.
Depois da morte de Samora, o Dr. abandonou a política activa. Porquê?
Samora morreu em 1986 e eu abandonei a política cinco anos mais tarde, portanto, quando fiz 50 anos. Achei que tinha desempenhado as funções que desempenhei no país, no partido e no governo, por uma questão conjuntural, pois vínhamos de uma situação de grandes desiquilíbrios na altura da independência e havia necessidade de pessoas como eu ocuparem essas funções. Quando chegamos em 1991, vi que o país já tinha muitos quadros com experiência e, portanto, achei que ficar no poder era ocupar um lugar por veterania, já não me competia.
Há quem diga que o Dr. Cabaço, juntamente com a equipa base do governo da Frelimo, constituida por brancos, canecos e mulatos (...) abandonou a política activa por não concordar com o novo modelo de governação que estava a nascer, ou seja, não quis trair a consciência. é verdade?
É mentira. Primeiro dentro da Frelimo não havia grupo Cabaço. O meu grupo era do secretariado do Comité Central e fui o único que sai na altura. Foi uma decisão absolutamente pessoal e tomada de acordo com a minha consciência. O dr. Rebelo e outros continuam no Comité Central e isso é fazer política activa. Continuo membro da Frelimo e não tenho problemas com ninguém. Nunca fui marginalizado dentro da Frelimo por ser branco.
O PAÍS - 29.04.2009