Paulo Varela Gomes
Por coincidência, no mesmo dia em que saiu no P2 a minha última Carta ("Nós, os Pretos"), publicou Jason Keith Fernandes (J.K.F.) no jornal de Goa Gomantak Times um artigo de opinião, no qual, sem conhecer aquilo que escrevi, discute a problemática de que se ocupa o meu texto.
O artigo de J.K.F., escrito a propósito do 35º aniversário do 25 de Abril, é controverso mas muito estimulante. A coisa mais extraordinária que diz é que, para os povos das antigas colónias portuguesas e de Goa, a revolução portuguesa pode ter sido uma contra-revolução, porque um dos seus resultados foi o de retirar a esses povos o natural acesso à cidadania portuguesa e isso, longe de corresponder a uma "conquista", representou um poderoso retrocesso histórico. Muitos dos naturais do antigo ultramar português eram portugueses pela simples razão de que a lei assim o declarava: podiam votar nas eleições portuguesas e estavam sujeitos à mesma lei que os portugueses da Europa. J.K.F. sabe que os factos não espelhavam a lei, que Portugal vivia em larga medida sob o arbítrio e a ilegalidade, que havia cidadãos de primeira, de segunda e de terceira. Mas sabe também que os indianos que viviam na Índia inglesa, por exemplo, não eram cidadãos do Reino Unido: não votavam para o Parlamento britânico, desde logo.
Escreve J.K.F.: "Num mundo de variadas ideias, ideologias e fantasias, é a lei que em última análise desempenha o papel crucial de determinar o que é realidade e o que é fantasia [...]. A prática portuguesa segundo a qual o goês era português tem de facto o potencial de perturbar as noções racistas que continuam a governar o nosso mundo. Graças à agência da lei, posso, sem a mais pequena hesitação, dizer que sou português. Não tenho que ter a pele branca nem uma única gota de sangue europeu nas minhas veias [...]."
"Negar o portuguesismo dos goeses é aceitar o imaginário racista, porque é presumir que um povo que ocupa um território definido tem necessariamente que ser um só povo."
Com o 25 de Abril, diz J.K.F., Portugal declarou-se inteira e imaculadamente europeu. Cito: "Ao descartar o discurso colonial, os portugueses, em tempos vistos como imperfeitamente europeus e brancos, permitem-se agora ser activamente europeus e completamente brancos." Portugal aderiu à Europa "racista", aquela cujos cidadãos têm que ser do território europeu ou passar por inúmeras provas de europeidade. E fá-lo com alívio, sublinha J.K.F. É "encolhendo-se" de incómodo que os portugueses encaram quem quer falar da "portugalidade" ultramarina, a quem lhes lança o repto de aceitarem que, de facto, Portugal foi no passado, apesar de toda a injustiça e imperfeição, uma entidade pluricontinental.
Deduz-se do texto de J.K.F. que a experiência colonial portuguesa, embora muito contraditória, provou ao menos que podia haver países multicontinentais e não apenas multirraciais. Podia ser-se branco em África, preto na Europa, e ser-se cidadão de um único país.
PÚBLICO2 - 29.04.2009