As ondas de choque na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), que iniciaram com a controversa reforma curricular, acabam de resvalar para questões salariais, com os docentes a colocarem em xeque os números avançados pelo Padre Couto, Reitor, numa das edições do semanário domingo. É que Couto terá adiantado ao referido jornal dados estatísticos que sustentam uma pretensa vida de luxo que os docentes da maior e mais antiga instituição pública de ensino superior em Moçambique levam, facto que suscitou a ira daqueles.
O SAVANA traz na íntegra aos leitores a carta dos docentes.
Apesar de a estatística ser uma ciência universal, em termos de seu domínio de aplicação, sua aceitação e utilização, tem sido recomendado que ela seja usada com o devido cuidado, pois o seu uso sem a observância do cuidado a que nos referimos, pode servir para justificar “cientificamente” opiniões ou tomadas de decisão erradas, fundamentadas na estatística.
Os dados avançados pelo Padre Filipe Couto, Reitor da Universidade Eduardo Mondlane, que inspiraram o Bula-Bula a presentear a sociedade com um trabalho bombástico sobre as “benesses e a boa vida dos docentes da UEM” (ver Bula-Bula do Jornal Domingo de 26 de Abril de 2009) causaram um mal-estar no nosso seio. Inicialmente pretendiamos ignorar este trabalho de “investigação” levado a cabo, cujos resultados mais parecem uma provocação à pessoa dos docentes da UEM. Contudo, este assunto acabou voltando para a agenda em diferentes momentos de conversa dentro e fora da UEM (nos nossos círculos de amizade), razão porque acabamos assumindo que o nosso silêncio poderia ser interpretado como uma prova de que as inverdades publicadas por Bula-Bula são afinal a mais pura verdade, pois diz o velho ditado que “quem cala consente”.
O Padre Filipe Couto acha que não devemos discutir os nossos problemas através dos órgãos de informação, mas ele usa exactamente os meios de comunicação para veicular informações não correctas, para denegrir a nossa imagem e, talvez, até para fazer com que a sociedade se vire contra os docentes da UEM, acusando-os de elitistas, de ser pessoas que nada fazem e auferem fabulosos salários.
De facto, das vezes que tem aparecido na Imprensa, nunca é por ou sobre causas nobres como a qualidade da nossa docência, investigação e extensão. Quando aparece é para casos polémicos como as promoções à margem dos regulamentos (a propósito ninguém se quis beneficiar da oferta do Padre Couto), a introdução forçada de Licenciaturas de 3 anos quando a proposta de lei preconiza 3-4 anos e agora com os salários falsos dos docentes da UEM. Qual será o tema da próxima aparição? Esperemos para ver.
Professor Catedrático
Padre Filipe Couto, pergunte ao nosso colega, o Director dos Recursos Humanos, quanto ganha um Assistente-Estagiário ou um Assistente na UEM. Alguns dos Assistentes em serviço na UEM são profissionais com mais de 20 anos de serviço na universidade. O salário líquido do Assistente, o maior de entre os salários das duas categorias citadas, não excede significativamente os 20.000,00 Meticais. Donde é que o Padre Couto tirou os 34.278.775 Meticais que se afirma serem o salário médio e líquido que um docente da UEM aufere mensalmente? Os 20.000,00 Meticais citados atrás incluem uma série de subsídios que o nosso governo foi introduzindo no salário dos docentes exactamente como forma de tentar tornar mais digno o salário do docente. Se se retirassem todos os subídios que dilatam o nosso salário, o salário mensal líquido do Assistente ficaria abaixo dos 10.000,00 Meticais mensais. Este é que é o verdadeiro salário do Assistente da UEM. São estes os valores que vão auferir como pensão os colegas que reformarem nos tempos mais próximos. O Professor Catedrático, ponto máximo da carreira de docente universitário, tem um salário que não excede significativamente os 15.000,00 Meticais. Quem quer conhecer os verdadeiros salários dos docentes da UEM, pode interpelar a cada um deles e perguntar qual é o vencimento básico de cada um. Nenhum docente (desde o Assistente até o Professor Catedrático) terá o valor anunciado pelo Padre Couto. É estranho que estando há quase 3 anos na UEM o Padre Couto ainda não conheça o salário dos seus quadros, a menos que tenha sido levado por uma pura maldade.
Sabemos que o Governo está a realizar esforços para transformar estes subsídios em partes reais do salário dos funcionários da UEM e em melhorar os salários de outros funcionários públicos afectos à outros sectores de actividade, no âmbito da sua reforma do sector público e como forma de reter os quadros que o Estado forma e depois perde a favor do sector privado. Estes subsídios foram resultado de muita negociação dos seus antecessores e é com alguma tristeza que em vez de vermos um Reitor que luta pela melhoria dos salários daqueles que labutam e contribuem para elevar bem alto o nome da instituição, como fizeram os seus antecessores, passa a vida a denegrir a imagem dos seus colegas e nem luta para manter os direitos já adquiridos.
Também causou admiração a forma como foi calculado o salário líquido médio por hora (1.350,00 Meticais) que nos parece que foi calculado assumindo apenas um número médio de horas de leccionação, talvez até não realista, como se o trabalho do docente se limitasse apenas as horas de leccionação. Durante a nossa formação aprendemos que não basta apenas introduzir dados no computador e calcular um valor. É preciso olhar para o sentido físico desse valor que é calculado. O que é que ele representa? O que se pretende com este valor? Se pegarmos nas 40 horas de trabalho semanal e multiplicarmos pelo salário líquido médio por hora calculado pelo Padre Filipe Couto (1.350,00 Meticais) e pelas 4-4.5 semanas por mês, facilmente poderemos chegar à conclusão errada de que os docentes da UEM nadam em dinheiro. Também
Os 34.278,775 Meticais que Bula-Bula descreve como o salário médio líquido que o docente da UEM aufere mensalmente podem ser, na verdade, o valor que o Professor Associado ou o Professor Catedrático, categorias mais altas na carreira de Docente Universitário, auferem mensalmente. Para se chegar a estas categorias são normalmente necessários uma Licenciatura, um Mestrado, um Doutoramento e mais de 20 anos de carreira. Se retirarmos todos os subsídios o valor reduz para cerca de 15.000,00 Meticais. O Padre Filipe Couto acha justo que após este percurso longo e duro o Professor Catedrático termine a sua carreira com o salário de cerca de 15.000,00 Meticais?
Como é que o salário médio do docente da UEM é igual ao salário dos Professores Catedráticos e Associados quando estes são uma minoria na instituição? Mesmo sem uma máquina de calcular ou um computador é fácil ver, usando correctamente a estatística que foi usada de forma errada pelo Padre Filipe Couto e que foi reproduzida no Bula-Bula do Jornal Domingo de 26 de Abril de 2009, que o salário médio dos docentes vai estar próximo do salário dos Assistentes e Assistentes-Estagiários, que formam a maioria do corpo docente da UEM. Padre Couto, porque não faz uso das capacidades existentes no Departamento de Matemática e Informática (o corpo de docentes que lecciona o curso de Licenciatura em Estatística) para produzir dados estatísticos fiáveis, evitando assim estes erros elementares e as conclusões erradas resultantes dos dados errados?
O Padre Filipe Couto toca num problema que vivemos fingindo que ele não existe: O problema dos salários que pretendemos mais atractivos, mais dignos, direito inalienável patente ou que garante a realização dos direitos que constam na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Garantir o Direito à Saúde, o Direito à Educação, o Direito à Habitação e o Direito à Alimentação (partes integrantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos), para nós e nossos dependentes, passa por salários dignos. O facto de não apresentarmos permanentemente reclamações sobre estas questões não significa que estamos satisfeitos, mas sim que entendemos as dificuldades que o nosso Governo tem de melhorar as nossas condições de vida e de trabalho, pois estes melhoramentos não dependem apenas da boa vontade dos governantes mas do nível de desenvolvimento do país, que ainda não produz riqueza que permita proporcionar a todos os moçambicanos uma vida menos penosa. Causa-nos, pois, um certo mal-estar, que a nossa compreensão sobre a situação do país e sobre a nossa situação salarial seja respondido com esta dolorosa provocação do Padre Couto. O que pretende atingir com este acto malicioso? Acreditamos que a política do nosso Governo é a de melhorar os salários de todos os moçambicanos e não a de amputar os salários dos docentes da UEM, como sugere a mensagem do Padre Filipe Couto na Cerimónia de Abertura do Ano Académico. Não vamos comparar neste espaço os nossos salários com os dos nossos colegas nas outras universidades, mesmo as da região da SADC, para não mostrar as grandes discrepâncias que se registam, que também contribuem para a desmotivação do docente.
Discussão interna
Padre Filipe Couto, porque não promove a discussão interna deste problema, antes de vir a público dizer inverdades? Agindo de forma correcta, teria a oportunidade de conhecer o nosso sentimento, de corrigir alguns dados que não sabemos se acredita realmente que sejam verdadeiros, evitando esta lavagem de roupa suja pública. Com isto não pretendemos dizer que a sociedade não deve saber o que se passa na UEM, pois a UEM é uma instituição pública que é financiada pelos impostos dos cidadãos deste país. A UEM é, deste ponto de vista, propriedade dos Moçambicanos. Estes têm o direito de ser informados, mas de forma correcta e sem distorções premeditadas, sobre o que se faz com as suas contribuições anuais.
O Padre Filipe Couto tenta fazer acreditar que recebemos mais do que merecemos. No lugar de divulgar dados falsos, acreditamos que a solução é fazer com que passemos a trabalhar melhor e essa deve ser a sua grande aposta. Não é dar a entender à sociedade que recebemos salários muito elevados e trabalhamos pouco. Até duvidamos que esta informação corresponda a verdade, pela forma simplista como esta análise foi feita. Se existem problemas dentro da UEM discuta-os em fóruns apropriados e traga para o conhecimento da sociedade apenas dados que espelhem a verdade, para não colocar a sociedade a fazer análises e juízos errados com base na informação errada que está a colocar à disposição do cidadão moçambicano.
Quanto aos verdadeiros problemas da UEM aconselhamos Bula-Bula a consultar os relatórios de algumas reflexões e avaliações que já tiveram lugar, assim como a aproximar-se de estudantes, docentes e outros funcionários da UEM para tentar perceber quais são os verdadeiros problemas. Esperamos que Bula-Bula faça um esforço para tentar ser imparcial. Se o fizer, acreditamos que poderá encontrar problemas como os salários não atractivos, orçamentos aquém das necessidades (que reconhecemos que resultam das limitações orçamentais do país), deficiência de meios informáticos, bibliografia e outros materiais de ensino, acesso deficiente à Internet e consequente dificuldade de consultar bibliografia disponível na forma electrónica (suporte imprescindível nos dias de hoje), falta de laboratórios devidamente equipados para realizar aulas laboratoriais e desenvolver habilidades práticas de resolução de problemas, falta de fundos e outros meios para a realização de trabalhos de campo, necessidade de uma maior exposição dos docentes às metodologias de ensino praticadas no ensino superior, a falta de condições para a realização de trabalhos de investigação, etc. Agora temos mais um problema, que é a falta de motivação causada pelos posicionamentos pouco encorajadores do nosso Reitor.
O Bula Bula também pode perguntar a docentes de outras instituições quanto tempo se trabalha para preparar aulas, leccionar, preparar trabalhos laboratoriais, preparar provas, corrigir provas, relatórios e outros trabalhos de turmas com largas dezenas de estudantes, assessorar estudantes, realizar trabalhos de investigação, realizar trabalhos de extensão, participar em actividades de administração e gestão nos órgãos, colaborar com outras instituições de ensino e investigação, realizar actividades de actualização profissional, escrever materiais de apoio e outras múltiplas actividades dos académicos que “flagelam” psicologicamente os docentes na altura das avaliações anuais.
O Bula Bula, parafraseando o Padre Couto, remata com a seguinte afirmação: “Na UEM um estudante tem muitos professores e um professor tem poucos alunos”. Bula Bula e quem quiser pode deslocar-se as nossas salas de aulas durante o período laboral e pós-laboral e verá como um professor tem “poucos” alunos, que alguns até se sentam nos corredores. As senhoras, mesmo no jeito da cultura africana, até trazem capulanas para se poderem sentar à vontade nas escadas dos anfiteatros.
Padre Filipe Couto, esta resposta não pretende, de forma nenhuma, evitar ou contornar qualquer crítica que nos venha a ser dirigida. Pedimos apenas que não use os orgãos de informação para veicular informações distorcidas, mas sim para falar das verdadeiras fraquezas, que acreditamos que existem e são do seu conhecimento, para que possamos usar esta informação para melhorar o nosso desempenho, acto que vai ser motivo de orgulho para nós próprios, para a instituição e para a sociedade.
Um grande abraço aos que, de forma incansável, se batem pela justiça.
Um grupo de docentes devidamente identificados!
SAVANA – 29.05.2009