Em Livro de Memórias
“Dos líderes africanos, depois de sair do Governo, tive apenas espaçadas mensagens de cumprimentos vindos de Eduardo Mondlane, que morreu assassinado em 1969. Tínhamos travado conhecimento em Nova Iorque, sendo ele funcionário da ONU no departamento dos fideicomissos, e sempre disposto a conviver com os portugueses. Era Doutor em sociologia e antropologia pela Northwestern University, e tínhamos um amigo comum, o professor Jacques Freymond que organizou e dirigiu o Instituto de Estudos Internacionais de Genève, para onde encaminhei alguns bolseiros” – Adriano Moreira, ministro da Colónias entre 1961 e 1963
Adriano Moreira foi ministro responsável pela pasta das colónias do regime de Salazar de 1961 a 1963. Homem de vista largas, cedo se apercebeu da necessidade de reformas de fundo a introduzir nos territórios sob administração portuguesa, que o imobilismo de Salazar protelava no tempo. Pouco tempo permaneceu no governo pois os ultras do regime sentiam dificuldade em assimilar o alcance das soluções preconizadas por Adriano Moreira, que mesmo assim conseguiu abolir o Estatuto do Indigenato e publicar o Código de Trabalho Rural – no meio das denúncias de um Sebastião Soares de Resende – e cultivar laços de amizade com o casal Mondlane.
Antes do cargo ministerial, o Prof. Adriano Moreira foi participante da delegação portuguesa nas Nações Unidades (1957-1959), altura em que travou conhecimento com aquele que viria a ser o primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique. Adriano Moreira era considerado representante de uma "esquerda moderna" descomprometida das grandes linhas do regime salazarista, tendo como jovem advogado defendido os generais opostos a Salazar, envolvidos no golpe falhado de 1947.
Aos 82 anos, o Professor Adriano Moreira, publicou um livro de memórias em que recorda, entre outras coisas, a sua passagem pelos corredores do poder político. De “A Espuma do Tempo - Memórias do Tempo de Vésperas” extraímos o seguinte trecho em que o autor faz referência ao primeiro presidente da Frelimo:
“Dos líderes africanos, depois de sair do Governo, tive apenas espaçadas mensagens de cumprimentos vindos de Eduardo Mondlane, que morreu assassinado em 1969. Tínhamos travado conhecimento em Nova Iorque, sendo ele funcionário da ONU no departamento dos fideicomissos, e sempre disposto a conviver com os portugueses. Era Doutor em sociologia e antropologia pela Northwestern University, e tínhamos um amigo comum, o professor Jacques Freymond que organizou e dirigiu o Instituto de Estudos Internacionais de Genève, para onde encaminhei alguns bolseiros.
Quando o conheci não falava de intervir em movimentos armados, e olhava para a evolução africana com perspectiva académica e exigências éticas, embora tendo passado brevemente pela Casa do Império, onde conhecera Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, e outros que ali se encontravam.
Fui visita de sua casa em Nova Iorque, a mulher Janet era inteligente, informada, determinada, e empenhada na carreira do marido e nas causas da autodeterminação e direitos humanos.
Convidei-o, quando entrei para o Governo, para vir ensinar para Portugal, o que em princípio aceitou, querendo porém submeter-se a concurso.
Criei um lugar de professor de Antropologia no Instituto de Medicina Tropical, e Mondlane passou por Lisboa com a mulher, seguindo ele para Genève e tratando eu de proporcionar à Janet uma visita a Moçambique, para conhecer a terra, as gentes, e a família.
Quando esta regressou, ficou na York House, onde a fui visitar, e ali me disse claramente que havia uma distância apreciável entre os meus projectos e as resistências de que tivera experiência em Moçambique, pelo que o casal não viria para Portugal. Ela era branca, e parecia não ter encontrado a igualdade de tratamento pela qual se batia. Nunca mais vi o Eduardo, que em "Struggle for Mozambique" (1969) expôs o seu programa, no ano em que foi vítima mortal de um atentado em Dar-es-Salam.
Já depois da Revolução de 1974, a Janet veio visitar-me a minha casa em Lisboa, quando andava na recolha de depoimentos para uma biografia do Eduardo. Mais tarde (2001) Nadia Manghezi publicou um livro intitulado "O meu coração está nas mãos de um negro", usando para a biografia de Janet algum material que esta recolhera, e não pude deixar de comover-me com as referência feitas ao passado, incluindo as inquietações que o casal sentira pela extrema fadiga que eu revelava, e a esperança que apesar de tudo depositaram na minha intervenção.
Manteve-se em Moçambique, onde de novo casou, enfrentando as dificuldades sem perder a fé na utopia e nos amanhãs melhores.
Do Eduardo deixou este trecho de uma carta de Abril de 1957: “O mundo africano está em grande comoção política e social. Se os portugueses não mudarem a sua posição política vão perder a sua influência em todos os territórios que hoje controlam. Se há um português que está disposto a fazer mudanças profundas na posição portuguesa sobre África, esse será o Dr. Adriano Moreira. Se ele não conseguir fazer nada nessa direcção, Portugal estará perdido”.
Da inquietação dela fiquei agora a saber, por uma carta para o Eduardo, a impressão de esgotamento que lhes causava: "no que diz respeito ao próprio Moreira, gosto cada vez mais dele. É o único português de que eu verdadeiramente gosto (para além da empregada da York House)... Ele próprio tem que enfrentar uma montanha de oposição, cada passo é por uma ribanceira acima... Não fazes ideia de como ele parece cansado".
Anos mais tarde reparei que, no que toca à política do "beco de honras", a que mais me lisonjeava era o facto de ser o único Ministro do Ultramar que não recebera a Ordem do Império, certamente o sinal mais significativo de que todo o reformismo, todo o esforço de conciliação das etnias e culturas, toda a dificilmente racionável esperança de fazer convergir os valores da História com as exigências do futuro urgente, eram inconciliáveis com a irracional, dominante, e raras vezes comprovada ilusão, de que era possível, e justo, e irrenunciável, fazer regressar a vida habitual.”
CANAL DE MOÇAMBIQUE - 28.05.2009