A opinião de: Virgílio Cambaza*
O preâmbulo da Lei de Terras (Lei nº 19/97, de 1 de Outubro) estabelece que “a terra é um meio universal de criação de riqueza e do bem-estar social e por isso, o seu uso e aproveitamento tornam-se um direito de todo o povo moçambicano”. O mesmo preâmbulo refere que a Lei procura adequar-se “ao desafio para o desenvolvimento que o país enfrenta e à nova conjuntura política, económica e social e conferir garantia de acesso e segurança de posse da terra, tanto aos camponeses moçambicanos, como aos investidores nacionais e estrangeiros”.
A fim de acomodar os interesses acima expostos, particularmente dos camponeses moçambicanos, a Lei tornou-se aberta à aplicação de normas e práticas costumeiras desde que as mesmas não contrariem a Constituição (nos seus artºs 12 e 24).
Os camponeses moçambicanos são agrupados numa categoria que a própria Lei designa por comunidades locais. Com efeito, no seu artº 1, a Lei indica que as comunidades locais são “agrupamentos de famílias e indivíduos, vivendo nos limites de uma circunscrição territorial de nível de localidade ou inferior, que visam a salvaguarda de interesses comuns, através da protecção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água e áreas de expansão.
A ligação e a articulação das comunidades locais com as instituições políticas nacionais são asseguradas através de órgãos que indistintamente têm a designação de autoridade tradicional (artº 118 da Constituição da República) e de autoridades comunitárias (Dec. do Conselho de Ministros nº 15/2000, que aprova as formas de articulação dos órgãos locais
do Estado com as autoridades comunitárias). O surgimento destas autoridades obedece a formas de legitimação tradicional (sucessão linhageira ou carismática – conferida em função do poder económico e de alguma outra notoriedade, no campo profissional, artístico, desportivo, religioso, entre outros).
O reconhecimento das autoridades tradicionais condu-las a uma posição jurídica ecléctica por se tornarem representativas e agentes de interesses contrapostos.
Por um lado, são mandatárias, representando interesses das comunidades locais. Por outro lado, são responsáveis pela articulação dos interesses do Estado junto das comunidades locais. Com estas características, estas autoridades locais ficam obrigadas à realização de um leque de actividades referidas no artº. 4 do Dec. nº 15/2000.
José (2007) e Nielsen (2007) revelam que, em consequência da posição ecléctica que assumem e dos interesses próprios que procuram satisfazer, as autoridades comunitárias são obrigadas a desenvolverem habilidades e formas de acção que lhes permitam representar interesses contrapostos.
Dados os conflitos de interesses sobre a terra, emergentes de situações da tensão entre as comunidades locais e os titulares de direitos de exploração mineira, tanto o Estado (que pretende defender camponeses e priorizar a exploração mineira) como as autoridades comunitárias (mandatárias das comunidades mas igualmente representantes dos interesses e objectivos do Estado) ficam em numa situação no mínimo desconfortável e contraditória. Neste contexto, o artº 43 da Lei de Minas (Lei 14/2002, de 26 de Junho) define que: (i) o uso e ocupação da terra necessária para a realização de actividade mineira é regulada pelas disposições sobre o uso e aproveitamento da terra constantes da Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, sem prejuízo das disposições dos dois nºs seguintes; (ii) o uso da terra para operações minerais tem prioridade sobre outros usos da terra quando o benefício económico e social relativo às operações mineiras seja superior; (iii) os títulos de uso e aproveitamento da terra obtidos nos termos da Lei de Terras e a licença ambiental que são atribuídas com o fim de exploração mineira ao abrigo de uma concessão mineira ou certificado, tem um período de validade e dimensão consistentes com o definido na concessão mineira ou certificado mineiro e são automaticamente renovadas quando estes títulos forem renovados; e, (iv) no caso de uma área designada de senha mineira ser declarada ou ser emitida uma concessão mineira ou certificado mineiro, sobre terra sujeita a direitos de uso e aproveitamento da terra, esses direitos anteriormente existentes são considerados extintos após o pagamento de uma indemnização justa e razoável ao titular dos direitos anteriores, pelo Estado, no caso de uma área de senha mineira, e pelo titular do direito mineiro, no caso de concessão mineira ou certificado mineiro.
Nos casos em que o Estado considere o benefício económico e social relativo às operações mineiras superior aos interesses das comunidades instaladas nas zonas de interesse mineralógico, essas comunidades ficam obrigadas ao dever de ceder a sua posição jurídica a favor dos titulares dos projectos mineiros, por os seus DUATs se considerarem extintos, ainda que tal facto só possa ter lugar, após o pagamento de uma indemnização, por parte do Estado ou dos titulares das licenças de exploração, consoante se trate de título de senha mineira, de concessão mineira ou de certificado mineiro. O projecto da construção de 700 casas para as famílias que serão deslocadas de Moatize no âmbito da instalação do megaprojecto da exploração do carvão enquadra-se na aplicação deste dispositivo legal. As mesmas fontes indicam que, além das casas, a cada família serão atribuídos cerca de dois hectares de terras para a agricultura.
No entanto, as mesmas fontes não nos fornecem indicações sobre a aptidão das áreas distribuídas, nem sobre a capacidade dos beneficiários aproveitarem as referidas áreas, sobre a sua localização relativamente a mercados de bens de consumo, factores de produção e produtos agrícolas, acesso a serviços agrícolas, acesso a infra-estruturas produtivas e sociais, acesso a água e energia, etc. Também não é dada informação sobre como é que as famílias deslocadas vão subsistir no período interino até às primeiras colheitas, nem sobre o que é que as famílias perdem com a deslocação (isto é, sobre o custo de oportunidade, para as famílias, desta deslocação).
Além dos benefícios atrás referidos, a legislação mineira prevê outros benefícios relacionados com a implantação de projectos mineiros. O artº 28 do Regulamento dos Impostos Específicos da Actividade Mineira, por exemplo, estabelece o seguinte: “No Orçamento do Estado é fixada uma percentagem das receitas geradas na extracção mineira para o desenvolvimento das comunidades das áreas onde se localizam os respectivos projectos mineiros, em relação das receitas previstas e relativas a actividades mineiras.
* texto públicado no Boletim do IESE, 14ª edição.
VERTICAL – 11.06.2009