Eduardo Cintra Torres
As eleições europeias deram uma importante lição sobre opinião pública. Pela primeira vez numa eleição nacional, os resultados contrariaram não só todas as sondagens às intenções de voto, excepto uma, como o tom geral dos meios de comunicação dominantes.
À excepção de Pedro Magalhães (responsável do Centro de Estudos e Sondagens de Opiniões), mais nenhum responsável por empresas ou institutos autorizados a publicar sondagens fez qualquer reflexão séria sobre a discrepância entre os seus resultados e as opções dos eleitores (PÚBLICO, 15/6). Pedro Magalhães falou em assumir responsabilidades; outros, como Rui Oliveira e Costa, que é sondador, comentador de política e de futebol, deram desculpas. No caso da Eurosondagem, a sobreavaliação do PS chegou aos 10%. Já nas presidenciais em 2005 Manuel Alegre estranhava as sondagens desta empresa. Se os responsáveis das empresas de sondagens não tomarem iniciativas para descobrir efectivamente o que se passou em cada sondagem, como propõe Magalhães, alguém deveria fazê-lo. Ou eles se auto-regulam ou o Estado terá de intervir.
Terá? Sim, infelizmente, porque o tema é da máxima gravidade. As sondagens enganaram os portugueses em geral e os políticos em particular. Foram, em parte, responsáveis pelo tom da campanha eleitoral: por exemplo, o PS poderia tê-la alterado se confrontado com um segundo lugar em sondagens; o CDS não teria perdido tempo a denunciar sondagens que lhe davam um quarto dos votos que obteve. Sem se apurar as razões, fica a suspeita de que as sondagens ou erraram por falhas técnicas ou por malícia. Não podem os justos pagar por eventuais pecadores. Se as sondagens de intenções de voto mantiverem no espaço público a aura de produto tóxico que envenena os consumidores de informação, alguma coisa terá de ser feita para proteger a verdade e a cidadania.
As sondagens divulgaram-se a partir dos anos 30 nos EUA e o seu primeiro grande promotor, George Gallup, defendia as suas virtudes democráticas ao representarem a opinião pública por inquirição de amostra estatisticamente representativa da população. Entre eleições, os decisores políticos poderiam agir de acordo com a nova "vontade geral" expressa em sondagens, o que limitava a arbitrariedade da acção política: "Precisamos de conhecer a vontade do povo a cada instante", escreveu Gallup. Por outro lado, o método permitia conhecer realidades sociais. Tornou-se um instrumento essencial para as sociedades se conhecerem a si mesmas. Para impor a sondagem, Gallup insistia em particular na sua fiabilidade: "A via mais eficaz para avaliar a fiabilidade dos referendos por amostra é hoje comparar os resultados com as previsões". Foi precisamente nesta avaliação que as sondagens pré-europeias falharam redondamente.
Há diversos argumentos teóricos e práticos contra as sondagens, alguns que o próprio Gallup refutava desde os anos 30, ou desenvolvidos desde então. Têm razoabilidade, mas, no geral, o que se perde é muitíssimo inferior ao que se ganha. De facto, o que está hoje em causa em Portugal é apenas a fiabilidade de algumas sondagens, originadora da falta de credibilidade de todas. A necessidade imperiosa de se apurar o que sucedeu deriva da responsabilidade social e política que as sondagens assumem, e que, na ausência de auto-regulação, obrigará o Estado a intervir.
Pedro Magalhães dá um exemplo significativo: nas eleições britânicas de 1992, as últimas sondagens asseguravam uma curta vantagem dos trabalhistas - e os conservadores ganharam com 7,6% de vantagem. A Market Research Society reuniu um painel de especialistas para avaliar erros dos institutos e propor medidas. Acrescento duas informações relevantes sobre essa eleição. A vitória dos conservadores de John Major em votos foi esmagadora: tiveram a mais expressiva votação de sempre num partido em eleições gerais. E Major obteve-a sem grandes comícios. Levou a campanha para as ruas, numa proximidade "à antiga", e fez muitas intervenções em cima dum caixote de embalagens de sabão. A votação massiva desmentiu sondagens, líderes de opinião e media. Parafraseando Gallup, em 1992 no Reino Unido e em 2009 em Portugal, perdeu a "tese da estupidez das massas".
Os resultados da eleição europeia também contrariaram por completo o tom geral da comunicação social portuguesa. Passo ao lado da vergonha jornalística de o Diário Económico e a TSF terem escondido a sondagem da Marktest, que tinham em exclusivo, e que dava a vitória ao PSD. A maioria das reportagens e notícias opinativas e dos comentadores apontaram para a derrota do PSD, da sua estratégia, da escolha do cabeça de lista, dos aspectos formais da campanha (proximidade, rua, cartazes, etc.). Por outro lado, foi incensada a megacampanha do PS; raramente se referiu que os seus comícios se encheram com camionetas de forasteiros. Se dos outros partidos se dizia que tinham pouca gente, nunca tal se referiu em relação ao PS, nem mesmo quando, numa acção de campanha absurda quanto ao contacto com a cidadania, Vital Moreira levou os jornalistas a um local onde não existe uma única pessoa - o alto duma serra com "moinhos" de energia eólica.
Media e seus comentadores ignoraram completamente, absolutamente, totalmente, outros indicadores da opinião pública disponíveis. Essa é uma crítica que se faz historicamente, não às sondagens, mas ao seu uso: criam um deserto à sua volta, há menos debate, menos auscultação e verificação de outros sinais da opinião pública. Qualquer pessoa que andasse na rua, que falasse com pessoas vulgares, despolitizadas, desinteressadas da política em geral - e esquecesse os jornalistas e os comentadores da TV - sentiria que a onda tinha mudado, que tinha desabado a "espiral de silêncio" que impedia o cidadão comum de criticar o Governo e o PS: as opiniões na rua, na loja, na escola, no mercado, no transporte público eram agora maioritariamente contra o poder "rosa". Há muitos meses que se sentia este desacordo de opinião publicada e sondagens de intenção de voto com outras exteriorizações da opinião pública.
Não se pode ignorar estes sinais da opinião pública só por serem menos científicos do que as sondagens; até porque estas, como se provou, também falham. No conceito de opinião pública, há séculos que decisores e pensadores tomam em conta a opinião geral, as manifestações, os motins, as greves, a vox populi, as opiniões dos líderes dos grupos, as posições dos grupos profissionais, as cartas dos leitores, etc. Tudo isso esteve à disposição de todos, incluindo dos institutos de sondagens. Eu ouvi - antes das eleições - pessoas politizadas ou não-politizadas dizer que não acreditavam naquelas sondagens. Não eram pessoas obscurantistas ou contra a "ciência", eram bem informadas apenas por andar na rua e contactar com outras fora do seu círculo fechado. Para quem não sai à rua e não anda nos transportes nem nos locais frequentados pela "canalha", bastava ler blogues e caixas de comentários nos órgãos de informação antes de 7 de Junho, bastava atentar nas manifestações ruidosas, nas "manifes" de "profs" convocadas por SMS, nos apupos orquestrados ou não, no êxito internético da canção dos Xutos, nas concentrações à porta das fábricas, bastava ver e ouvir para notar a dislexia entre as sondagens e todos - mas mesmo todos - os outros indicadores quantitativos ou qualitativos da opinião pública.
PÚBLICO – 20.06.2009