Por Armando Nenane e Emídio Beúla
Moçambique tem de acabar, de uma vez por todas, com a existência dos homens armados da Renamo posicionados em Maríngue e Cheringoma na província central de Sofala. Esta recomendação, dada ao Presidente da República, Armando Guebuza, no decurso da XIII Cimeira do MARP, em Sirte, na Líbia, surge numa altura em que, como sempre, o discurso sobre o exército residual da então guerrilha da Renamo volta a dominar o discurso político por causa das eleições que se avizinham.
A questão dos homens armados é um problema que se estende desde a assinatura do Acordo Geral de Paz em 1992, pondo fim ao conflito armado que opôs as tropas governamentais da Frelimo e o exército da Renamo. Segundo Lourenço do Rosário, presidente do fórum nacional do Mecanismo Africano de Revisão de Pares (MARP), personalidades eminentes daquele instrumento continental de auto-monitoria entendem que não faz sentido que um país soberano e com instituições democráticas como Moçambique tenha partidos políticos com homens armados. A necessidade de se acabar com esta força foi uma das recomendações do relatório do fórum nacional do MARP em Moçambique, posteriormente acolhido pelo secretariado daquele organismo já ao nível africano.
Entretanto, Lourenço do Rosário considera que ainda persiste uma grande desconfiança entre a Frelimo e a Renamo para que o problema da existência de homens armados não conheça o seu fim. Nas suas palavras, nota-se que a Renamo serve-se dos homens armados para garantir a sua auto-confiança.
“A Renamo acha que pode ser agredida ou liquidada se lutar contra a Frelimo sem estar armada, tal como está hoje”, indicou.
Governo não reconhece Guerra Civil
Se a recomendação de se acabar com a existência dos homens armados da Renamo foi acolhida por Guebuza, o mesmo não se pode dizer em relação ao uso da designação guerra civil à guerra que opôs as tropas governamentais da Frelimo e o exército da Renamo, tal como consta do relatório moçambicano sobre o MARP.
Para o painel, em Moçambique houve uma “guerra civil”, uma posição imediatamente posta em causa pelo Chefe do Estado. No entender de Guebuza, tratou-se de uma “guerra de desestabilização” uma vez que, nas suas palavras, uma guerra civil surge quando cidadãos de um mesmo país partem para a guerra depois de não conseguirem alcançar consenso sobre uma determinada matéria.
O PR explicou ainda que a origem da guerra em Moçambique foi fronteiriça, ou seja, entre países de fronteiras diferentes. Por um lado, havia a África do Sul e a Rodésia e, por outro, estava Moçambique.
“Moçambique tinha feito uma opção socialista do seu desenvolvimento e isso incomodava os países neo-liberais capitalistas à sua volta. A melhor forma para estes países foi matar o atrevimento logo no início da independência. Mais tarde é que esta guerra foi transformada numa guerra entre os moçambicanos pela democracia”, disse Rosário.
Instado a pronunciar-se sobre quais eram os riscos de se tratar a guerra por uma e não por outra designação, Lourenço do Rosário explicou que os riscos da atribuição de um determinado nome à guerra residem nas dificuldades que esse acto pode gerar no processo de reconciliação nacional.
Mesmo assim, insistimos, corre-se o risco de se atribuir um nome que não reflecte necessariamente aquilo que a guerra foi. Sobre este aspecto, o presidente do Fórum Nacional do MARP recordou que se tratava de uma questão que já havia sido discutida na Agenda 2025. Como não se chegava a nenhum consenso, acabou sendo proposto o termo “guerra dos 16 anos entre os moçambicanos”. O mérito dessa designação é que não indica a origem do conflito que, no dizer da fonte, não foi civil.
“A ideologia de que se tratava de uma guerra pela democracia foi transmitida pelos países vizinhos que achavam que deviam destruir o Estado comunista”, indicou, acrescentando que não é por acaso que os adversários da Frelimo insistem em chamar os membros deste partido de comunistas.
Lourenço do Rosário lamentou que se trata de um problema que dificulta a liberdade de se utilizar um facto histórico sem ferir o processo de reconciliação.
Governo nega privatização da terra
Ainda na apresentação do relatório, o secretariado do MARP defendeu a privatização da terra, argumentando que o facto de esta continuar propriedade do Estado pode construir entrave ao desenvolvimento do país.
“O Chefe do Estado respondeu, acertadamente, que Moçambique tem uma lei de uso e aproveitamento da terra que facilita bastante o desenvolvimento de actividades de iniciativa privada, apesar da terra pertencer ao Estado. A privatização da terra, ao invés de beneficiar as pessoas pobres, iria torná-las mais vulneráveis, pois com a privatização as populações iriam vender os seus títulos de propriedade, com o risco de poderem ficar sem nada”, explicou Lourenço do Rosário.
Continuando, a fonte indicou que foram evitadas recomendações rígidas por se entender que cada país tem a sua maneira de tratar a questão da terra.
De acordo com Rosário, muitos países que defendem a privatização da terra têm vivido mais conflitos do que os que se vivem em Moçambique, sobretudo os que precisaram de fazer reformas agrárias.
“O que se passa em Moçambique não são conflitos de terras, mas problemas decorrentes da falta de cumprimento da lei. Os conflitos surgem do facto de alguns compatriotas receberem a terra para o seu usufruto, mas que depois não a trabalham, pois ficam à espera do momento para poderem especular”, considerou.
No processo de auto-avaliação, segundo Rosário, foi constatado exactamente o que foi dito pelo Chefe do Estado, nomeadamente, que há conflitos de terra provocados por aqueles que recebem o direito de uso e aproveitamento, muitas vezes em detrimento das populações, pois ficam com a terra sem produzir, mas nunca se avançou a hipótese de privatização.
Questionado sobre o facto de que apesar da terra ser considerada propriedade do Estado e inalienável, a mesma continua a ser vendida debaixo da mesa, Lourenço do Rosário negou que a terra é vendida, referindo que o que acontece sempre é que se vende o direito de uso e aproveitamento, uma vez que esses direitos, depois de serem comprados, a terra continua a ser do Estado. “Os direitos de uso e aproveitamento são vendidos muitas vezes sem que o Estado ganhe. Mas esse é um problema de aplicação da lei, pois se a lei fosse aplicada ninguém poderia vender a terra”, considerou.
Outros pontos
Na cimeira, segundo Rosário, abordou-se a problemática dos conflitos pós-eleitorais. O presidente Armando Guebuza disse que esses conflitos se circunscrevem em reclamações de irregularidades e supostas fraudes. Guebuza informou aos seus pares que esses conflitos são encaminhados para as instituições de gestão eleitoral, nomeadamente a Comissão Nacional de Eleições e o Conselho Constitucional, tendo explicado ainda que se tratava de conflitos de baixa intensidade, os quais geralmente acabam por morrer por não haver razões para que se transformem em conflitos insanáveis.
Por outro lado, o MARP considerou insustentável o facto de Moçambique estar a viver acima de 50% das suas capacidades económicas e financeiras. No entender dos pares, essa situação cria a falsa ilusão de que está tudo bem, mas qualquer mudança conjuntural pode originar problemas bastante complicados para o país. Para eles, o governo deve procurar alternativas de colmatar este défice rapidamente de modo a deixar de depender demasiado das doações.
Negócios da nomenklatura
Existe ainda a percepção de que o acesso aos negócios em Moçambique era mais fácil aos membros e simpatizantes do partido no poder. Na sua resposta, o Chefe do Estado disse que esse entendimento não corresponde à verdade, uma vez que, segundo ele, a Frelimo é uma força política que está no poder há mais de trinta anos, sendo natural que grande parte das pessoas que gravitam à volta da Frelimo consigam identificar mais facilmente os sectores do negócio, o que não se significa que sejam encorajados pelo partido. Mesmo assim, acrescentou, muitos cidadãos pertencentes a outros partidos políticos têm estado a prosperar.
O relatório dizia que a cidade da Beira não tem merecido da parte do Governo a devida atenção porque está degradada e sem perspectivas de desenvolvimento. O Chefe do Estado respondeu que o problema não podia se circunscrever apenas na cidade da Beira, porque há muitas cidades moçambicanas em que as actividades económicas decresceram. Deu exemplo de Inhambane, Xai-Xai e Quelimane. Frisou que tal não significa que o Estado não está a investir na Beira, tendo dado exemplos de investimentos.
Aspectos positivos
O MARP tem estado a levantar aspectos relacionados com a democracia e boa governação política, governação empresarial, governação económica e desenvolvimento sócio-económico. Apesar de ter sido constatado aspectos negativos, Lourenço do Rosário frisou que o relatório elogiou o crescimento registado desde a independência, apesar da guerra que destruiu o país.
As condições da população melhoraram no que diz respeito à produção de alimentos, construção de infra-estruturas, educação, rede de saúde, acesso à rede eléctrica e água. O relatório do MARP também valoriza a forma como está sendo gerido o processo de paz em que Moçambique acaba sendo o único país que depois de ter assinado um acordo de paz nunca mais houve guerra.
“Há sinais evidentes de que Moçambique está vivendo num ambiente de paz e reconciliação, de abertura, de liberdade de expressão, de pensamento, o que favorece a consolidação das instituições democráticas do Estado. A experiência de autarcização e desconcentração de poder de gestão da coisa pública foi considerada como sendo salutar”, apontou.
SAVANA – 10.07.2009