Entre os poderes Legislativo, Executivo e Judicial em Moçambique
-“O equilíbrio de forças pende mais para o lado do PR e do executivo em detrimento dos poderes legislativo e judicial”
-“Trata-se de um sistema de governo presidencialista” – reage governo
Por Armando Nenane
Moçambique está a enfrentar sérias dificuldades no que diz respeito à separação de poderes à autonomia dos poderes Executivo, Legislativo e Judicial. Este facto foi destacado de forma particular pela Missão de Observação do Mecanismo Africano de Revisão de Pares (MARP), cujo relatório final de avaliação de Moçambique foi apresentado à imprensa, depois do mesmo ter sido apresentado ao Presidente da República, Armando Guebuza, em Sirte, na Líbia. O primeiro seminário com a imprensa, realizado semana passada pelo Fórum Nacional do MARP, em coordenação com o Ministério da Planificação e Desenvolvimento, marcou o início do processo de divulgação nacional daquele instrumento de avaliação entre os países africanos signatários.
De acordo com a referida avaliação, as dificuldades que se assistem no concernente à separação de poderes e à sua respectiva autonomia em Moçambique resultam da estrutura constitucional que estabelece um sistema de governo presidencialista em que o Presidente da República é forte e poderoso, apoiado pelo Executivo, e, do outro lado, se encontra um sistema legislativo judicial ineficaz, fraco e desprovido de recursos. Em conformidade com a prática em vigor nos países falantes da língua portuguesa, segundo o relatório em causa, o PR tem o poder de nomear os presidentes do Tribunal Supremo, do Conselho Constitucional e do Tribunal Administrativo, cujo poder a Assembleia da República não está em condições de contestar.
3.909.97 milhões de dólares norte-americanos para um período de cinco anos (2010-2014).
Com efeito, nem todas as preocupações que o documento levanta aplicam-se apenas ao caso de Moçambique, pois existem as chamadas questões transversais que preocupam os 29 Estados signatários do MARP, designadamente pobreza e desigualdade, dicotomia partido/governo/negócios, HIV/Sida, propriedade da terra, alto nível de analfabetismo, grande dependência da ajuda, fluxo de informação e escassez de dados, inclusão, criminalidade, segurança, violência doméstica, eleições, corrupção, migração e xenofobia.
São membros signatários do MARP a África do Sul, Angola, Argélia, Benin, Burkina Faso, Camarões, Djibouti, Egipto, Etiópia, Gabão, Gana, Lesoto, Malawi, Mali, Maurícias, Moçambique, Nigéria, Quénia, República Democrática do Congo, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Senegal, Serra Leoa, Sudão, Togo, Uganda e Zâmbia.
No caso concreto de Moçambique, o relatório final de avaliação deixa claro que o sistema de governação presidencialista, que se caracteriza por uma alta concentração de poderes na figura do Presidente da República, não permite uma maior independência dos poderes legislativo, executivo e judicial, uma situação que reduz a confiança dos cidadãos nas estratégias de combate à corrupção no país.
Dos super poderes à transparência limitada
No entender do MARP, os mecanismos constitucionais com vista a garantir a responsabilização, a transparência e o controlo horizontal são limitados, para além de que o PR e o governo não têm que prestar contas perante a assembleia, pelo menos sob o ponto de vista político.
O grupo de avaliação defende que o governo de Moçambique deve desempenhar as suas funções de acordo com as decisões do PR e da Assembleia. A Constituição da República prevê um mecanismo jurisdicional para a resolução de conflitos entre os diferentes braços do governo, através do Conselho Constitucional, mas na história política moçambicana, segundo o relatório de revisão, não há registo de qualquer conflito institucional relevante entre os dois órgãos soberanos, o que dificulta a avaliação das alegações e das percepções de tentativas do poder executivo e legislativo de influenciar o judicial.
Para além de nomear os presidentes do Conselho Constitucional, do Tribunal Supremo, do Tribunal Administrativo, os amplos poderes do PR incluem a nomeação do Procurador e do Vice-Procurador Geral da República, os reitores das universidades públicas, o governador e o vice-governador do Banco Central, assim como comandar as Forças de Defesa e Segurança, decidir quando convocar eleições, declarar guerra, estado de sítio e impor a lei marcial, assinar tratados de defesa, tratados internacionais e endossar as leis aprovadas pela AR.
A missão constatou que o princípio de separação de poderes está a enfrentar dificuldades em Moçambique, sendo que a causa pode ser encontrada nas disposições da Constituição, assim como na prática constitucional. “O equilíbrio de forças pende mais para o lado do PR e do executivo em detrimento do poder legislativo e judicial”, refere.
Em reposta a estas preocupações, o presidente Armando Guebuza não se alongou muito, tendo simplesmente considerado que no Estado moçambicano os órgãos de soberania, segundo o estabelecido no art. 134 da Constituição da República, assentam no princípio de separação e interdependência de poderes, pois trata-se de um sistema de governo presidencialista onde o PR e o Governo ocupam uma posição relevante em relação aos restantes órgãos do Estado.
Juízes com cores políticas
No concernente ao poder judicial, a avaliação feita em Moçambique pelo MARP constatou a existência de uma constante referência ao alegado facto de que a nomeação dos juízes é feita numa base política, um problema que compromete a sua independência.
A missão cita, a título de exemplo, o caso do anterior Presidente do Tribunal Supremo, Mário Mangaze, que detinha o cargo desde a sua criação em1988, mas que mesmo assim, e por vontade do Presidente Joaquim Chissano, conseguiu ser reconduzido em 2004, não obstante a objecção da Renamo na AR. Este caso, só para abrir um parêntesis, não foge muito do que terá acontecido com Isabel Rupia, uma jurista que foi supostamente afastada das funções de directora do Gabinete Central de Combate à Corrupção supostamente por ser implacável no exercício das suas funções e por não se deixar levar por conveniências de natureza política. Isabel Rupia veio a ser indicada pela bancada da Renamo na AR para o lugar de juíza conselheira do Conselho Constitucional, mas a proposta foi esta semana chumbada pela ditadura de voto da Frelimo alegando falta de idoneidade profissional na pessoa de Isabel Rupia.
De acordo com a avaliação do MARP, o Presidente do TS é, igualmente, nomeado automaticamente ao cargo de Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), uma instituição cujo papel central consiste em nomear os juízes para os tribunais judiciais. Considerando que o Presidente do TS é nomeado pelo PR e que o partido no poder detém a maioria no parlamento, tal como concluiu a missão, o Presidente e o seu partido podem exercer influência num número considerável de nomeações para o
CSMJ.
Esta questão foi desmentida pelo governo, que referiu que não corresponde à verdade a afirmação segundo a qual os juízes são nomeados na base da sua filiação partidária. O governo referiu ainda que os juízes presidentes dos tribunais Supremo, Administrativo e Constitucional são nomeados pelo PR na sua qualidade de Chefe de Estado, ao abrigo da competência que lhe confere a Constituição.
Por outro lado, ainda na óptica do executivo, a nomeação pelo PR está sujeita à ratificação pela AR no quadro do princípio de separação de poderes e interdependência de poderes, sendo que os restantes magistrados são nomeados e transferidos pelos respectivos Conselhos Superiores das Magistrados.
Ministros influenciam juízes e procuradores
Enquanto isso, os juízes e procuradores entrevistados no decurso de uma pesquisa da AfriMAP, citada na avaliação do MARP, apresentaram exemplos específicos de interferência indevida nos tribunais, directa ou indirectamente, pelos membros do executivo, os quais alegadamente procuram influenciar as decisões de carácter legal. Alguns exemplos das interferências reportadas ao MARP têm a ver com a alegada
pressão dos funcionários do governo sobre a Polícia de Investigação Criminal, os procuradores e os juízes em relação aos casos que se encontram nas suas mãos. O relatório também se refere aos advogados entrevistados que afirmaram que, com base na sua experiência pessoal, não tinham dúvidas que os ministros e outros altos funcionários do Estado pressionavam os juizes e procuradores. Isto, segundo a avaliação, conduz a situações frequentes em que os juízes libertam detidos antes de se formar uma acusação contra eles e a pareceres arbitrários.
Parlamento nas mãos do Governo
Num outro desenvolvimento, a avaliação do MARP coloca em causa a credibilidade do poder legislativo, referindo que o mesmo enferma de falta de capacidade e não goza da confiança do público.
O parlamento moçambicano realiza as suas sessões em regime de tempo parcial e tem um número limitado de dias para a execução das funções de fiscalização. Na sua visita a Moçambique, entre 6 de Fevereiro e 3 de Março do presente ano, a missão de revisão do MARP foi informada que o trabalho legislativo é feito dentro de um período de três meses (duas sessões no máximo de 45 dias cada), um máximo de 35 dias para o trabalho com o eleitorado e 15 a 25 dias para as funções de fiscalização durante as quais os deputados são pagos. Os deputados da Frelimo na AR, segundo a avaliação final, têm melhores possibilidades, pois são nomeados para conselhos de administração e comissões onde obtêm um rendimento adicional, mas tal não acontece com os deputados da oposição.
Por outro lado, segundo a fonte, os 15 a 25 dias por ano destinados ao trabalho de fiscalização “são terrivelmente inadequados”. A explicação dada para o curto período de tempo atribuído às funções de fiscalização prende-se com constrangimentos de ordem financeira.
Orçamento do Estado: uma arma
Mais ainda, a decisão sobre os fundos a serem atribuídos à AR cabe ao executivo. Neste aspecto, considera a avaliação, tanto os deputados da Frelimo como da Renamo reclamaram que “o governo não está a dar a devida atenção à AR no contexto do Orçamento do Estado”.
No entender do MARP, para um país com um enorme problema de corrupção e de mecanismos inadequados de responsabilização, não é desejável que a AR tenha limitações na realização das suas funções de fiscalização devido à exiguidade de recursos financeiros.
A fonte destaca ainda a falta capacidade técnica do parlamento como sendo um problema que prejudica o trabalho da AR, alegadamente porque uma assembleia carece de capacidade técnica para lidar, de forma adequada e em tempo razoável, com a iniciativa de legislação submetida pelo executivo. “Sente-se uma grande necessidade de pessoal técnico qualificado e de formação técnica para a maioria dos deputados”, considera.
Por outro lado, a proposta de orçamento é promulgada quase que exactamente como foi apresentada, supostamente porque a AR é informada que a estrutura orçamental é definida com base nos fundos disponíveis e limitada pelos valores que serão financiados pelos doadores. “O facto de Moçambique estar fortemente dependente do financiamento dos doadores constitui um constrangimento na capacidade da AR questionar o executivo em relação às prioridades orçamentais”, considera o documento, acrescentando ainda que os doadores preferem uma maior prestação de contas e o seu apoio não deve servir de desculpa para limitar as funções da AR.
Deputados opulentos
A missão teve conhecimento de preocupações generalizadas em relação à riqueza e nível de vida dos deputados da AR, que contrastam de forma gritante com a pobreza da população em geral. Assim, constata o mecanismo africano, os deputados têm um problema de imagem com o público. “Eles são vistos como opulentos e insensíveis ao sofrimento geral das massas”, considera.
Por outro lado, segundo a fonte, a natureza do sistema eleitoral, que é de representação proporcional, não contribui para melhorar a situação. É que, conclui, a adopção deste sistema significa que os membros da AR não têm que ser cidadãos locais como tal e o afastamento do público dos membros da AR ocorre facilmente.
Urge caçar “tubarões” e não “raias miúdas”
No capítulo referente à Governação e Gestão Económicas, a Missão de Observação do MARP constatou que os casos de corrupção que aparecem no sistema de justiça criminal de Moçambique têm como alvo “a raia miúda e média” e não investiga os casos que envolvem os “tubarões”. Esse problema, segundo os dados do MARP, tem a ver com a dificuldade de se obter provas para acusar o funcionário público suspeito de actos de actos de corrupção, mesmo quando a percepção da opinião pública seja de que estes são corruptos. A missão não obteve estatísticas sobre o número de casos de corrupção recebidos ou acusados, nem a sua distribuição por sectores sociais e altura de ocorrência supostamente devido ao facto de o sistema de justiça não possuir uma base de dados central que permita a obtenção de dados estatísticos imediatos e fiáveis sobre a situação da criminalidade, incluindo a corrupção. Contudo, a avaliação feita permitiu concluir que o sentimento predominante é de que as medidas anti-corrupção tomadas pelo governo, incluindo as políticas e as instituições, ainda arrastam consigo o flagelo da corrupção. Uma das maiores críticas aos esforços do governo é de que apesar da abundância de reclamações sobre várias formas de corrupção e de abuso do poder, estes males não são acompanhados com a celeridade e o vigor necessários. Liderança honesta e incorruptível. O relatório apresenta alguns desafios, como a necessidade de haver uma liderança política honesta, empenhada e incorruptível a todos os níveis da sociedade. Aconselha a introdução de uma política de “tolerância zero em relação à corrupção” na função pública e no público em geral, através de salários competitivos, sanções severas quando a corrupção é detectada e divulgação nos órgãos de informação. Por último, o documento considera que um factor crítico para o sucesso no combate à corrupção é a vontade política de implementar eficazmente e de forma imparcial as medidas anti-corrupção, sendo que a vontade política não se verifica quando o público acredita e há provas de que os chamados “tubarões” ou “intocáveis” continuam a ser protegidos das acusações de corrupção e apenas a “raia miúda” e os “fracos” são apanhados e acusados. Nestas circunstâncias, conclui a fonte, qualquer estratégia anti-corrupção ou instituição perde a credibilidade.
GCCC: uma instituição viciada
Uma das razões citadas pelo relatório como estando por detrás do fraco desempenho das instituições anti-corrupção é a falta de independência do Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC) em relação ao braço executivo do governo no que diz respeito aos procedimentos de nomeação, demissão, enquadramento e regime de financiamento. Embora o GCCC possa realizar investigações sobre os casos de corrupção, segundo a fonte, este órgão não é politicamente independente, alegadamente porque a decisão final para acusar é da responsabilidade do Procurador Geral da República. O Presidente da
República nomeia o PR e este, por sua vez, nomeia o director do GCCC. “A percepção é de que este processo de nomeação leva à não acusação de quadros de nível sénior do governo e ministros sob investigação”, refere a fonte. Acrescenta o relatório que o facto de o Director do GCCC subordinar-se ao Procurador Geral cria uma relação de dependência entre o GCCC e o PG, uma situação que parece minar a independência e a autonomia do GCCC.
SAVANA – 24.07.2009