Quando Raul Domingos
foi Pelé
Entrevista conduzida por
Mário Martins *
D. Matteo Zuppi é um
amigo do nosso jornal e, sempre que pode, passa por cá para nos dar sempre mais
uns detalhes sobre o caminho difícil que levou à reconciliação dos moçambicanos
em 1992. Desta feita não foi connosco mas ao jornal confessional “Mensageiro”
que D. Matteo partilhou mais alguns pormenores inéditos das conversações de
Roma. E um dos pormenores é o equívoco de Raul Domingos ser tomado por Pelé
quando era suposto de estar secretamente em Roma na companhia de Vicente Ululu
...
Como é que a Comunidade chegou a interessar-se pela situação
em Moçambique ou como é que o problema da guerra em Moçambique chegou à
Comunidade?
D. Matteo: Foi através da Porta Aberta. Santo Egídio não
representa o início da Comunidade. Esta começou em 1968 e em 1973 é que chegámos
a Santo Egídio, como lugar confiado à Comunidade. Aí começámos a fazer uma
oração, todas as noites, às 20h45, aberta a quem queria entrar. Uma vez,
convidámos um bispo de Moçambique, o arcebispo da Beira, a participar na
oração. E começou uma amizade entre nós e ele. No início, ele falou-nos do
problema existente entre o Estado e a Igreja. O Estado, no início, tinha uma
imagem muito negativa da Igreja, nacionalizou todos os templos; olhava a Igreja
como colaboradora do antigo regime. Mas boa parte da Igreja tinha estado do
lado da independência, embora grande parte dos bispos fossem africanos, porque
a Santa Sé mudou muitos deles em 1974 e 75.
Como actuaram?...
- Nós colocámos o bispo
D. Jaime em contacto com o Partido Comunista Italiano. Nós não conhecíamos ninguém,
mas chamámos alguns apoiantes, um pequeno grupo, e depois chegámos até ao
próprio Berlinguer, o secretário-geral. O PCI era um dos mais importantes da
Europa, nós pensamos que era mesmo um dos mais importantes do mundo. Na verdade,
o PCI chegou a ter 45% dos votos em Itália, um pouco antes de ter assinado o
compromisso histórico com a democracia cristã. Berlinguer era um homem de
cultura, um homem com sensibilidade. Ele mostrou-se sensibilizado com o nosso
contacto e mandou o irmão a Moçambique, porque havia uma ligação muito forte
entre o Partido Comunista Italiano e a Frelimo. Muitos membros da Frelimo
tinham construído laços muito fortes com o PCI durante os anos da luta de
libertação. Então, o irmão de Berlinguer foi a
Moçambique dizer-lhes:
Olha, vocês têm de se reunir com a Igreja para encontrar solução para alguns
problemas.
Depois, ele pediu-nos
ajuda, porque Moçambique vivia um problema muito grave, em 1984, com a seca. E
nós começámos a enviar ajuda. Mas o problema era este: qual o sentido desta
ajuda, se o país continuava em guerra? Os bispos de Moçambique fizeram algumas
cartas pastorais muito importantes, nas quais defenderam a necessidade de
diálogo. Depois, foram falar com o presidente de Moçambique, Joaquim Chissano,
e ofereceram-se como mediadores para o diálogo com a Renamo. Nós queremos
contactar a Renamo..., disseram-lhe.
Chissano respondeu-lhes:
Isso é convosco. Eu não vos peço para irem falar com a Renamo, mas se vocês querem
ir falar, é um problema vosso... Isto aconteceu no final de 1987, princípios de
1988.
Ainda existia o Muro de
Berlim...
- Sim. Mas a situação em
Moçambique era diferente da de Angola. Angola era como que um laboratório da União
Soviética, até mais do que um laboratório... Em Moçambique, a Frelimo tinha
ligações com Moscovo, mas também tinha boas relações com os Estados Unidos da
América.
Por causa da proximidade
da África do Sul?
- Porque era pragmática!
Isso já era visível no tempo de Samora Machel. Recorde-se o Acordo de Incomáti,
que Samora Machel assinou com o regime do apartheid sul-africano e que
fez acabar com as actividades do ANC em Moçambique. Moçambique
Os bispos, então...
- Até 1988 não era
possível falar com a Renamo, porque era falar com os terroristas, com os
bandidos armados. A partir do momento em que D. Jaime
Como é que fizeram?
Foram a Moçambique?
- Não. A estratégia foi
procurar elementos da Renamo no exterior e verificar se tinham um contacto
directo com a Renamo. A Frelimo era uma estrutura muito interna, o Dhlakama
estava no terreno, nunca ninguém o tinha visto. Então, apareciam pessoas que
nos diziam Eu sou da Renamo, mas depois verificava-se que não tinham qualquer
ligação directa à Renamo que estava a combater em Moçambique. E
A Renamo raptava
religiosas?
- Sim, mas mais por medo
que depois dos ataques chegassem as forças da Frelimo e matassem as populações,
para acusar a Renamo. Esta foi, pelo menos, a justificação que depois nos
deram. Nós temos de as levar connosco, caso contrário chega o Exército regular
e mata, disseram-nos. E muitas vezes isso terá acontecido, porque o Governo
pensava haver uma colaboração entre os camponeses e a Renamo. Então, a
Renamo atacava e levava
consigo a aldeia inteira, para evitar represálias sobre os habitantes.
E esse sinal foi dado?
- Sim, muito
rapidamente. Levaram a religiosa portuguesa até à fronteira de Moçambique com o
Malawi e nós mandámos lá um missionário para a receber. Correu tudo bem e,
então, nós decidimos que aquele era o canal bom, o canal apropriado para
contactar directamente a Renamo no terreno.
Estava aberto o caminho
para as negociações...
- Não, porque de início
a Frelimo não queria negociar. A Frelimo queria que, em primeiro lugar, a
Renamo entregasse as armas. Depois, propunham uma amnistia, dizendo: Vocês são
culpados, mas nós perdoamos e vocês podem regressar a casa. Mas a Renamo
respondia: Nós pegámos em armas porque queremos fazer isto, isto e isto.
Portanto, se vocês não fazem essas mudanças, nós continuaremos a lutar. A
amnistia, para a Renamo, era um insulto, porque não se sentia culpada de nada.
A guerra tinha começado não porque a Renamo fosse um bando de ladrões, mas
porque do outro lado estava um poder marxista que defendia soluções políticas
com as quais a Renamo não concordava. E por isso dizia Se vocês não mudam, nós
continuamos a lutar. Mas a Frelimo não queria negociar. O Governo aceitava que
os bispos falassem com a Renamo, mas para convencer esta a entregar as armas.
Uma situação difícil...
- Sim. Em Maio de 1988,
combinámos uma viagem de D. Jaime à Gorongoza, porque o bispo era muito aceite pela
Renamo. Antes, tínhamos promovido um encontro entre D. Jaime e o contacto da
Renamo que vivia na Alemanha; depois, organizámos a viagem de D. Jaime à
Gorongoza, com a ajuda dos sul-africanos, o que prova que estes ainda tinham
laços com a Renamo. Mas o bispo não sabia que o encontro se iria realizar
dentro de Moçambique, pensava que iria ser na Zâmbia. Os sul-africanos fizeram
isto, segundo disseram, para não assustar D. Jaime. A viagem foi feita toda
durante a noite; partiram de noite e regressaram ainda durante a noite, de
avião.
Foi a oportunidade de D.
Jaime falar, durante duas ou três horas, com Dhlakama. Este encontro foi
fundamental, porque Dhlakama - que já confiava em D. Jaime
Estava cansado da
guerra...
- Não. Ele disse: Se nós
temos de falar, é com estes que devemos falar. Por um lado, D. Jaime é moçambicano
e sempre falou de diálogo, mesmo fazendo zangar o Governo moçambicano. Depois,
porque a Comunidade de Santo Egídio não tem nenhum interesse em Moçambique. E
Tinha sido aberto o
caminho do diálogo.
- Depois começaram
contactos no Quénia, com a mediação de responsáveis quenianos. Mas estes
contactos fracassaram, na minha opinião porque eram demasiado formais.
E vocês?...
- Nós não fizemos mais
nada, nessa altura, porque não considerávamos uma parte indispensável do
processo de diálogo. Se as coisas estavam a andar, perfeito! Mas a verdade é
que esses encontros no Quénia, em 1989, entre o Governo moçambicano e a Renamo,
acabaram por fracassar. Aliás, as duas delegações nunca se encontraram.
Nunca se encontraram?!
- Foi assim... O Quénia
convidou as duas delegações. Quis alojá-las no mesmo hotel, mas logo que isso
se soube, os elementos da Renamo fugiram. Nós queremos negociar, não queremos ‘coisinhas’
assim de estar no mesmo hotel, disseram. Então, o Governo de Moçambique enviou
uma lista de exigências. Para negociar, vocês têm de estar de acordo com isto:
um, dois, três, quatro, cinco!. E a Renamo disse: Muito bem. Mas para negociarmos
vocês têm de estar de acordo com isto... E enviaram 17 pontos. E o diálogo
acabou, sem nunca as duas delegações se encontrarem.
Quem estava por detrás
da Renamo?
- Eu penso que, na
realidade, não havia nada, nem ninguém. Aliás, como penso suceder em muitas das
guerras em África. No início, a Rodésia e a África do Sul apoiaram a reacção de
alguns moçambicanos contra a Frelimo. Claro que a Rodésia branca, de Ian Smith,
não queria ter ao lado um país marxista. E o mesmo sucedeu com a África do Sul;
se havia um país que apoiava o ANC, então eles apoiavam quem se opunha ao
Governo de Moçambique. Mas nunca a Rodésia nem a África do Sul foram os ‘padrinhos’
da Renamo. Eu penso que a Renamo foi sempre autónoma. Era uma reacção de moçambicanos,
que contava com um certo apoio dos chefes tradicionais, que tinham sido
humilhados pelas estruturas da Frelimo. E, depois, havia os erros da Frelimo, a
corrupção, as nacionalizações.
Havia portugueses por
detrás da Renamo?
- É difícil dizer.
Haveria, certamente, alguns portugueses que olhavam bem a Renamo, os
portugueses são saudosistas... E havia aqueles que tinham visto os seus bens nacionalizados.
Mas eu nunca vi ninguém a dizer a Dhlakama você tem de fazer isto, fazer
aquilo. Não, era mesmo o Dhlakama que decidia.
As negociações
fracassaram e...
- Em 1989, nós
decidimos: É preciso tomar uma iniciativa. E começámos a dizer a Dhlakama que
teria de se deslocar a Roma. Pedimos autorização ao Governo italiano e este
disse que sim, mas acrescentando que a deslocação teria de ser secreta. De
qualquer modo, informámos o Governo moçambicano de que iríamos tomar uma
atitude deste género. Dhlakama foi a Roma, secretamente, encontrou-se com
alguém do Governo italiano e, então, disse que as negociações teriam lugar em
Roma.
Quem estava no Governo
em Itália?
- Na altura, Andreotti
já era primeiro-ministro e ajudou-nos muito. Dhlakama chegou sem documentos e
os serviços de segurança deixaram-no entrar, e sair de Itália, sem qualquer
documento. Ou seja, o Governo italiano deu cobertura à operação.
E pagou os custos?
- Não. Os custos pagámos
nós. Gastámos uma verba significativa para nós, mas que não era nada comparada
com os custos da guerra.
Muito dinheiro?
- Algumas centenas de
milhões de liras. Em dólares, cerca de 300 mil.
O valor de um
automóvel...
- O valor de um
apartamento em Roma, com dois ou três quartos, em Trastevere.
E...
- Depois dessa visita de
Dhlakama a Roma, dissemos ao Governo moçambicano que era chegada a altura de se
encontrar secretamente com a Renamo, em Roma. Nós
Na altura, decorria em
Itália o Mundial de futebol...
- É verdade. E nós
pensámos, entre outras loucuras que fizemos, em levar as duas delegações a um
desafio de futebol do Mundial, um jogo entre as selecções dos Camarões e de
Itália, em Roma. E
com... Pelé. Eles foram
para o jogo rodeados pela segurança italiana, não tinham documentos e, de um
momento para o outro, no estádio, centenas de pessoas começaram a gritar Pelé!
Pelé! e a segurança entrou em pânico.
Foi um problema sério
[D. Matteo, que confessa nunca ter entrado num estádio de futebol, ri-se às
gargalhadas]. (a delegação da Renamo era composta por Raul Domingos e Vicente
Ululu).
As negociações...
- As duas delegações
encontraram-se e nós fizemos um primeiro documento, um documento-chave para a paz,
que começava com uma frase do papa João XXIII: buscar aquilo que nos une e
colocar de lado aquilo que nos divide. Em segundo lugar, as duas partes
reconheciam-se como filhos da nação moçambicana, da mesma família. Em terceiro
lugar, ambos concordavam em prosseguir com este método de encontros para
encontrar uma solução para o problema da guerra em Moçambique. E
Eles ainda estavam em
Roma quando foi divulgado o comunicado?
- Sim. Mas nós impedimos
que eles falassem com os jornalistas, porque o encontro era secreto. Sabem que nem
sequer temos fotos desse encontro?! Tínhamos receio de estragar tudo e,
portanto, nem sequer tirámos uma foto que fosse nesse dia 10 de Julho de 1990.
Também assinou o
documento?
- Sim. Assinei como
testemunha, que era o estatuto da Comunidade de Santo Egídio.
E...
- Surgiu o problema de
quem seriam os mediadores do processo de paz. E eu convidei-os a regressarem
dali a um mês para resolvermos esse problema. Eles voltaram a Roma. O Governo
não queria mediadores, queria falar directamente com a Renamo, sem qualquer espécie
de testemunhas. A Renamo não aceitou, exigindo mediadores. Começaram as
divisões: o Governo queria o Zimbawe como moderador, a Renamo queria o Quénia.
E nenhum queria o
mediador do outro. Então, eles disseram: Já que estamos aqui, estes que nos
ajudaram a encontrar-nos é que vão ser os mediadores. E ficaram como mediadores
um representante do Governo italiano, o bispo da Beira, o fundador da
Comunidade de Santo Egídio (Andrea Ricardi) e eu próprio. Nós confiamos em
vocês. Vocês são os
mediadores, disseram. E assim começámos a fazer a mediação.
E assim um padre, o D.
Matteo, de um momento para o outro tornou-se num diplomata.
- Sim. De certa maneira,
sim. Mas nunca me senti, nem nunca serei diplomata. Penso que um dos segredos é
que eles confiaram em nós, porque viram que não tínhamos qualquer interesse em
Moçambique e, por outro lado, porque éramos verdadeiramente neutrais, não
defendíamos nem uns nem outros. Era uma autoridade moral, que os dois
respeitavam. E que permitiu que eles falassem verdadeiramente entre eles.
As negociações...
- As negociações duraram
dois anos. Começámos em Julho de 1990 e terminámos em Outubro de 1992.
A parte final foi
difícil?
- Em Agosto de 1992,
Dhlakama e Chissano encontraram-se em Roma. Foi
Qual foi o último
problema a encontrar solução?
- Foi talvez o da
administração. A Renamo ocupava algumas zonas, nas quais tinha uma certa
administração paralela. O Governo dizia: Chega! Agora vamos enviar o nosso
administrador, a nossa administração. Fazemos a paz, então essas zonas são
território moçambicano e nós somos o Governo. A Renamo argumentava: Não.
Vocês vão mandar em
zonas que são nossas? Nós temos de ter a nossa administração. E cada um tinha
as suas razões. O Governo dizia não poder aceitar a divisão do país. A Renamo
não queria ver militares do Governo nessas áreas e se isso acontecesse
continuaria a lutar.
E...
- Chegou-se a um
compromisso de que o Governo aceitava a administração da Renamo como
administração do Estado.
Seguiu-se a aplicação do
acordo.
- De início não quisemos
que a Comunidade fosse envolvida na aplicação do acordo. Quisemos guardar uma certa
distância, quisemos constituirmo-nos como uma certa reserva, para o caso de
haver problemas na aplicação do acordo. Por isso é que envolvemos a ONU; quem
aplicou o acordo foram as Nações Unidas. Nós ficámos de fora, embora
continuássemos a resolver algumas questões, uma vez que éramos os mediadores.
Fazíamos propostas informais.
Acabou tudo em bem...
- Em 1994 foram feitas
as primeiras eleições livres.
O acordo de paz em
Moçambique é o grande triunfo da Comunidade de Santo Egídio nesta área?
- De certo modo, sim.
Porque foi um papel formal e porque o acordo de paz resultou. Por outro lado,
para muita gente foi um primeiro conhecimento da Comunidade. No entanto, a esta
acção seguiram-se outras, como o caso da Guatemala, em que promovemos encontros
entre a guerrilha e o Governo.
Chegaram a ser
convidados para as negociações em Timor?
- Não. E nem teríamos de
ser, porque havia lá quem trabalhava bem a favor da paz. Não há que criar problemas
onde eles não existem. Em Timor, a ONU já estava a fazer a mediação. Eu
conhecia bem o actual primeiro-ministro, Mário Alkatiri, estive com ele
variadíssimas vezes. Mas o processo estava a decorrer, não havia que intervir.
Aliás, penso que o protagonismo é, muitas vezes, inimigo da paz. Seja o
protagonismo de uma pessoa ou de uma organização.
A Comunidade de Santo
Egídio assume-se como uma estrutura informal da igreja católica para as questões
da paz?
- Somos da igreja e
estamos em Roma. Mas
Como é que o Vaticano
olha para a Comunidade?
- Vê-nos bem, somos
reconhecidos. Apoia-nos em muitas coisas. Isso sucedeu, por exemplo, quando promovemos
um encontro entre facções argelinas, em Roma. Foi
Muita gente olhou para
esse encontro com muita esperança, tanto mais que a Comunidade de Santo Egídio
estava envolvida...
- O grande problema foi
a presença da FIS. Mas a verdade é que a FIS é que é o problema. Eles estavam dispostos
a dizer aos seus homens Chega! Basta de violência! se tivesse havido uma
abertura ao diálogo por parte do Governo. E não houve.
É fácil elaborar um
acordo de paz? Basta apenas colocar as pessoas a falar umas com as outras? Há truques?
- É verdade que há
muitos truques, há uma dinâmica complicada, complicadíssima. Mas sem as pessoas
falarem umas com as outras é difícil chegar a qualquer entendimento e acabar
com a guerra. Falar apenas, não chega. Mas falando procura-se uma solução; é o
início da solução. Depois, há uma dinâmica que se estabelece.
E, a certa altura,
começa a existir uma cumplicidade entre os negociadores. Vimos isso no caso de
Moçambique, no caso do Moçambique. A certa altura, eu começo a entender os teus
problemas e tu começas a entender os meus. E depois tens de explicar aos teus
seguidores que não és um traidor, e eu tenho de explicar aos meus que não sou
tonto. E aqui há uma cumplicidade, mesmo entre as delegações.
D. Matteo fala destas
questões, deste trabalho, com muito entusiasmo...
- Eu acredito que a
guerra é a mãe de todas as pobrezas. Olha para Angola, um país riquíssimo, que
vende petróleo a todo o mundo, e que vive na pobreza! Pense-se no sofrimento
que causa.
Quando entra na sua
igreja, de manhã, vai à espera de encontrar um novo desafio deste tipo ou vai preparado
para um dia normal?
- O segredo é não nos
colocarmos limites. Ninguém pensava, na Comunidade, ver-se envolvido um dia
numa situação como a de Moçambique, ser mediador de paz ou ver como se
constitui um exército único. Mas se somos chamados a colaborar, se alguém
precisa de nós, não podemos fechar as portas. Por isso, dizemos que não há limites
que não seja lutar contra o mal e fazer a caridade.
Assumem-se como
herdeiros do apelo à paz feito pelo Papa em Assis?
- Assumimos. Depois de
1986, todos os anos temos promovido encontros. E o que vemos? Tem havido uma participação
crescente, uma participação extraordinária. Têm sempre participado chefes de
religiões, patriarcas.
Um dos mais
significativos foi o de 1989, em Varsóvia. Belíssimo
Muçulmanos?...
- Muitos muçulmanos, na
verdade, não acreditam nos campos de concentração. Eles pensam que foi o sionismo
que inventou todo o cenário dos campos de concentração para justificar a
existência do Estado de Israel. Foi a primeira vez que muitos deles foram a
Auschwitz. E os muçulmanos levaram uma coroa de flores, tal como fizeram todas
as outras religiões.
Como prevê o futuro da
Comunidade de Santo Egídio? Cresceu enquanto foi novidade e entrará agora em
crise?
- Não. Nós temos de
continuar o nosso trabalho com paciência, porque ainda se continua a matar em
nome da religião. Este espírito de Assis é uma resposta a esses problemas.
Vive em Itália, um país
rodeado de conflitos. Veja-se o caso dos Balcãs e, do outro lado do Mediterrâneo,
a Argélia... Como se sente, ao olhar tão de perto essas realidades?
- Há duas maneiras
viver. Uma, a mais comum, é pensar que o fogo do meu vizinho não me diz
respeito e que ninguém me vai tirar o meu bem-estar. A outra é tentar construir
pontes, apoiar a educação, ajudar a criar laços entre os povos. Este último é o
nosso caminho. No caso dos Balcãs, a Comunidade envolveu-se durante dois anos e
chegou a ter um acordo assinado por Milosevic e Rugova, sobre o funcionamento
das escolas no Kosovo.
Isto ainda antes do
conflito ter mesmo acontecido. Os sérvios aceitaram ceder algumas escolas,
aceitaram que o albanês fosse ensinado nessas escolas, aceitaram algumas
coisas. O acordo não foi assinando em conjunto; Milosevic assinou primeiro,
Rugova assinou depois. Mas depois os albaneses optaram pela via militar,
através do UÇK, e o acordo ficou sem efeito. Rugova era um pacifista, nunca
aceitou a violência como método. Era até chamado de Ghandi dos Balcãs. Quando
chegou a UÇK, os sérvios disseram: Ai querem a violência?... Então vamos para a
violência!.
Para estar tão bem
informado, D. Matteo é um padre que lê muitos jornais...
- Eu penso que um padre
deve ler o jornal todos os dias. Ou melhor: todos os cristãos devem ler um
jornal todos os dias. Caso contrário, vivem nas nuvens. É necessário ler a
bíblia e o jornal, todos os dias.
* © 2009 PPFMC
Messaggero di S.Antonio Editrice
SAVANA – 14.08.2009