No seu novo romance, Mia Couto criou um território onde só existem homens. Mas nem o autor nem as personagens conseguiram escapar ao universo feminino. "Jesusalém" é uma exaltação das mulheres.
As cidades todas que Mia Couto visitou durante os dez dias que passou em Portugal a promover o seu novo romance, "Jesusalém", são agora uma única cidade.
O escritor moçambicano conta isto sentado num banco de jardim na zona da Expo, em Lisboa, um dia antes de regressar a Moçambique e no fim dessa intensiva viagem que o levou de Tavira a Chaves. "Eu chegava já atrasado ao encontro seguinte, com Zeferino [o editor da Caminho] a 140/150 quilómetros à hora e desembarcava, de repente, numa biblioteca. Não sabia onde é que eu estava, de onde é que eu vim, para onde é que eu vou. Estava num estado completamente irresponsável do ponto de vista da minha presença..." [risos].
Mia Couto não fez contas mas o seu editor, Zeferino Coelho, que o acompanha sempre nestas viagens que já fazem há três anos - Mia não gosta da palavra "tournée" porque "'tournée' é horrível, é uma coisa de artista que não sou" - disse-lhe que apareceu nestes encontros mais gente do que nos anos anteriores. Desta vez foram a sítios onde nunca tinham estado e durante "esta viagem" o escritor terá contactado com
A professora de português lia as passagens narradas por Marta e perguntava aos seus alunos: "Quem escreve isto é um homem ou uma mulher?" E nunca houve uma hesitação. "É uma mulher, não pode ser um homem", diziam. E quando ela revelava que não, que aquilo estava num texto de um escritor, que tinha sido escrito por um homem, as pessoas estranhavam. "Isso para mim é um prémio", conta Mia Couto. "Eu consegui não escrever como uma mulher, mas ser uma mulher. É aquilo que gosto de ser." [risos].
A mão invisível
Mia Couto começou a escrever a história deste lugar, Jesusalém, daquela família do viúvo Silvestre Vitalício, de todos aqueles homens, e de repente pareceu-lhe que a história estava demasiado pesada: só havia uma presença masculina. É então que aparece Marta, a mulher que vai a África à procura de memórias e que, tal e qual como Silvestre, está a fazer uma viagem para uma coisa que afinal não existe nem nunca existiu. "É uma construção dentro dela."
Para o escritor foi um desafio. "Tinha que ser mulher. Tinha que ser uma mulher portuguesa. Tinha que me vestir disso. Não é só uma outra forma, é também um olhar", explica. Por isso esteve atento aos preconceitos, aos olhares, ao modo como as mulheres europeias olham para as africanas e constroem um estereótipo. "Marta vive nesta angústia de se confrontar com a imagem de alguém que não conhece, alguém [a africana] que para ela lhe roubou o amor da sua vida. E descobre depois que afinal por trás desse estereótipo há uma pessoa, com um rosto, com uma vida, que ajuda a desfazer o 'cliché' sobre as mulheres africanas."
Na verdade, a personagem que guiou Mia Couto na história foi aquela que menos aparece no romance ou que aparece de uma maneira fantasmagórica. E também é uma mulher. "Quem conta a história é a Dordalma. É ela quem conduz a história. É a memória dela que expulsa esses homens daquele lugar".
"Dordalma, Dordalma nem Deus chega, nem tu vais", diz a determinada altura Silvestre Vitalício sobre a sua mulher e este nome, "dor de alma", foi importante para o escritor "ver melhor" a sua personagem porque percebeu que nunca a poderia ver. "Esta mulher não tem corpo, nunca chegaria a mim com uma presença material. Uma alma e uma alma que só existe
Foi uma notícia dramática que o autor de "Terra Sonâmbula" leu num jornal da Suazilândia que "despoletou" esta história. A notícia relatava que uma mulher tinha sido violada por todos os ocupantes de um autocarro. "Acho que ficou trabalhando dentro de mim e pedindo uma coisa que me permitisse conviver com isso." Essa mulher foi-o perseguindo e, de repente, apareceu-lhe na história. O nome, Dordalma, surgiu-lhe logo a seguir. "O nome, neste caso, foi importante para me guiar. Eu sou guiado por personagens. O nome funciona quase como uma personagem da personagem. É como se eu a vestisse e, estando vestida, já ela fica mais próxima. Eu já posso tocar melhor nela."
A um certo momento pareceu-lhe também que, sendo este universo conduzido de uma forma invisível, oculta, por aquilo que era a mão de uma mulher, também precisava de ter no próprio texto um diálogo com vozes femininas. E essas vozes teriam que aparecer de uma forma poética. Por isso em "Jesusalém" todos os capítulos têm epígrafes que são pedaços de poemas escritos por mulheres (Sophia de Mello Breyner Andresen, Hilda Hilst, Adélia Prado, Alejandra Pizarnik). Mia Couto não precisou de ir à procura destes poemas. "A Sophia já estava dentro de mim, ela para mim é a poesia. Quis fazer tudo só com citações da Sophia, mas depois percebi que era um bocadinho forçado. Notava-se que havia uma procura de coincidência. Por isso fiz de uma maneira mais livre. O que importa é que sejam vozes femininas. Foi essa a razão: para que se perceba que há ali presença de sombras, ecos e vozes que são sempre de mulheres." "Jesusalém" é uma exaltação da mulher. "Da mulher como fonte, como uma nascente, como produtora de renascimento."
Inesquecível é o diálogo que os dois irmãos, personagens deste livro, mantêm sobre as mulheres. "Mulheres são como as ilhas: sempre longe mas ofuscando todo o mar em redor", diz um. "Às vezes, as mulheres sangram", diz outro. "A mulher não precisa de ferida, ela nasceu com um rasgão dentro." E por fim, a voz do pai Silvestre Vitalício: "Sou macho, mas sangro como as mulheres".
E Mia explica: "O sangue das mulheres, do ponto de vista da realidade social e antropológica, faz parte do interdito, nem sequer se nomeia. Eu não conheço palavra. Funciona assim: a mulher quando está menstruada usa uma outra esteira e o homem sabe. Não se diz, sabe-se por via dessa linguagem não-verbal. Porque nessa altura o homem inclusivamente muda de casa, ele não pode ter contacto nenhum com a mulher. E se por acaso acontece um homem ter uma relação com uma mulher durante esse período ele tem que se purificar. Mas tudo é sempre não falado, não verbalizado."
O esquecimento
Mia Couto quer sempre partir para um livro não sabendo o que vai fazer, como vai fazer. Esse jogo de surpresa, de esconde-esconde, é que o atrai e o faz continuar a escrever. "Quando chegar ao momento em que eu não me sei renovar, deixo, abandono."
"Jesusalém" - que parece ser a obra
Silvestre Vitalício, uma das personagens deste livro, "proclama que o mundo acabou, que eles são os últimos sobreviventes mas, de facto, isso é um cenário, é um ecrã, é uma coisa que ele inventa para esconder outras razões." Porque este romance é também sobre a culpa e sobre o esquecimento. "Eu vejo acontecer o esquecimento. Aconteceu em Moçambique com a guerra civil, em 1992. Se for a Moçambique ninguém se lembra de nada, não existe, nunca houve, ninguém morreu, ninguém matou. E é espantoso como isso é agressivo. Há um apagamento profundo feito por uma decisão, um consenso silencioso. É como se toda uma nação se tivesse sentado numa mesa e sem falar tivesse decidido esquecer."
Mia Couto percebeu que isto "era tão eficiente e era um mecanismo tão bem executado" porque não era a primeira vez que acontecia. "Em outras guerras aconteceu também. Se perguntar a alguém sobre a escravatura ninguém sabe. Não há nomes, não há nome para dizer escravatura sequer. Palavra para designar escravo? Não se diz. Nas línguas locais também. Há palavra para dizer trabalho forçado mas não há palavra para designar o que seja o equivalente de escravo, alguém que é vendido a outro e que depois deixa de ter personalidade própria."
O escritor acha que há nisto "uma espécie de uma sabedoria que faz, ao mesmo tempo, uma economia de sofrimento, porque há ali uma atitude religiosa. O mal não se nomeia. Exorciza-se o mal não falando nele. Aquilo que os brasileiros dizem: 'Vira essa boca para lá e não se toca'. E, é curioso, os católicos mediterrâneos têm uma coisa um pouco inversa. Os velhinhos a falarem sobre as suas desgraças e um tem sempre mais do que o outro. Se um tem uma doença, o outro tem três. É nomeando a doença, é nomeando o mal que nós nos livramos deles. Ali não, não se pode nomear porque se vai chamar os maus espíritos. Então parece que há aqui toda uma aptidão para esquecer que está presente neste livro também. Há uma necessidade vital de esquecer."
As personagens de Mia Couto nunca escaparam completamente nem do mundo, nem da guerra. E é uma espécie de ironia trágica que seja a própria guerra que dá a Mwanito, a criança que vemos crescer ao longo do livro, os materiais para ele aprender a ler e entrar nesse outro mundo através da escrita.
"Este Mwanito sou eu", afirma peremptório o escritor. "Desde o princípio em que ele surge calado, recatado, pasmado". Na sua família, Mia era o que não falava, o que tinha habilidade para ficar calado. Alguns diziam: "Ele não fala porque não tem nada para dizer. É um caso perdido" [risos]. Mas havia também uma outra atitude, mais presente, que era dizer que ele estava fabricando qualquer coisa. "Vamos lhe dar tempo, vamos lhe dar espaço". Na família já havia um poeta (o pai do escritor) e por isso achavam que havia ali uma espécie de poesia
Mia foi revisitar a sua casa de infância na Beira e ela estava um destroço, era uma ruína. O escritor pensou que não deveria ter ido porque, diz, "estas peregrinações de saudade dão sempre nisto" Quis falar com o dono da casa - ele não estava -, deu a volta e lá atrás, num pátio traseiro, estavam uns miúdos a brincar.
"E brincavam as mesmas brincadeiras e os mesmos jogos que eu, que sobreviveram, os jogos que brinquei na minha infância, os berlindes, as três bolinhas." De repente, sentado ali, a olhar os miúdos, o escritor foi salvo. Percebeu tudo. "Essa casa que é minha, essa casa nunca vai estar
A sua pátria não é mais essa infância mas é uma infância que Mia Couto está a refabricar no presente. A sua pátria é reescrita, é ficção.
Isabel Coutinho – PUBLICO – 05.08.2009