Espinhos da Micaia
Por Fernando Lima
Já deve ter dado entrada na associação do ramo o protesto por concorrência desleal. Lá para os lados do Alto-Maé começou a funcionar uma lavandaria que promete desbaratar toda a concorrência no mercado local. Como aquela que nos tempos tinha o nome de Particular e era capa de prostituição organizada.
Do previsto, e ainda não se entrou na barrela propriamente dita, nas minudências, são necessárias carradas de detergente para clarear tanta sujeira. O inquérito julgamento às actividades de uma das empresas públicas vem revelando o que há décadas se murmura entredentes. Afinal os funcionários públicos, aqueles que ocupam posições de topo, não se contentam com os salários que de forma hipócrita são inscritos no Orçamento de Estado. A começar pelo carro comprado por 5% do seu valor, mas álibi para o discurso coitadinho do funcionário de Estado mal pago.
Embora o argumento seja populista à partida, um exercício de aritmética simples poderia demonstrar quantos carros poderiam os bombeiros comprar por troca com os carros de afectação pessoal do respectivo ministério de tutela. Claro que o camião com lança telescópica para atacar incêndios deixaria os “quadros desincentivados” como diz o léxico do Aparelho.
E por isso se criou a contrapartida dos incentivos que em todos os ministérios, ou quase todos, funcionam como fundos especiais para acolher assessores... para a comunicação, para assuntos jurídicos, para questões económicas. Por despacho discricionário do titular do cargo. Como nos distritos e autarquias se acomodam salários e honorários para os primeiros secretários da Frelimo.
Noutra linha de acção também bem conhecida, o partido do poder que se adaptou ao multipartidarismo, criou autênticos “pipelines” entre as empresas públicas e o departamento de Finanças na Pereira do Lago. Na mesma lógica. E como não há transparência, o “abre-te Sésamo” para o partido permite que uns tantos Ali Babás e a respectiva fauna acompanhante se beneficiem igualmente das generosas contribuições para o glorioso.
A lavandaria do Alto-Maé não se reduz aos cinco que foram apanhados na rede de contradições ditadas pela divisão do espólio, na lógica do “se eu não como não come ninguém”. Podem os cúmplices de todos os ministérios e de todas as instituições públicas – institutos e empresas – olharem para a roupa suja que passa pelo Alto-Maé e verem-se simultaneamente ao espelho.
Para além do carnaval e telenovela que concorre com os seriados brasileiros que justificam as audiências de quatro canais televisivos num dos países mais pobres do planeta, também há pedagogia a extrair da lavandaria do Alto-Maé.
Apesar do ar apatetado do ex-ministro que finge não saber o que é conflito de interesses, pode-se finalmente avançar com legislação e sobretudo práticas que afastem os titulares do Turismo de “lodges”, coutadas de caça e tendas de eventos, que o pelouro das Obras Públicas e Habitação não seja confundido com empresas paralelas de construção, empreitadas de estradas e pontes, imobiliárias e condomínios de luxo. Para que a Saúde seja a pública e não interesses abertos ou camuflados em clínicas privadas ou que os titulares da Educação invistam prioritariamente em universidades e colégios. Com o Carlos Cardoso, cuja memória se celebra por estes dias, mantive uma disputa pública exactamente sobre o conflito de interesses. Da sua costela populista defendeu – erradamente do meu ponto de vista – que se um ministro das Obras Públicas fosse dono de empresas do sector era uma forma de o controlar melhor e roubar menos.
Países mais sofisticados e com mais experiência que a nossa jovem independência de 30 anos têm legislação e práticas que podem facilmente aplicar-se a Moçambique. O que não significa recorrer ao paraíso para tentar purificar o inferno. Todos os dias as páginas dos jornais estão cheias de episódios picantes de ministros, capos e até presidentes apanhados nas malhas da corrupção. Nesses países de legislação aprimorada.
Por isso a lavandaria do Alto-Maé pode funcionar como oficina-escola, como aprendizagem para outras formas de estar no Aparelho de Estado e no polvo das paraestatais, organizadas actualmente para estarem em permanente galhofa com o ar sisudo dos inspectores do ministério das Finanças.
Para acabarmos com a concorrência desleal às lavandarias de verdade.
SAVANA – 20.11.2009