- Defende João Feijó, sociólogo português
Tendo sempre em conta o passado colonial, há duas atitudes a que se recusa nas suas reflexões sobre quem ele é – como português – aos olhos dos moçambicanos: «as visões maniqueístas e os simplismos fáceis». Licenciado em Sociologia, mestre em Relações Interculturais e actualmente a frequentar um doutoramento em Estudos Africanos, o académico João Feijó acaba de lançar – com a apresentação do sociólogo Carlos Serra – o seu mais recente livro intitulado “Do passado colonial à Independência: Discursos do semanário SAVANA nas celebrações das datas históricas de 1998-
- “A deslegitimação do Outro com argumentos de cariz racial, de origem geográfica ou de género deve ser entendida num contexto de competição pelo acesso a recursos de poder escassos” – destaca o académico
Por Armando Nenane
Fotos de Naíta Ussene
Nascido em Portugal quatro meses após a independência de Moçambique, descendente de uma família que viveu em Moçambique entre 1974 e 1977, João Feijó fala, em entrevista ao SAVANA, das linhas gerais de um estudo que procura perceber as sensibilidades, os ressentimentos e os estereótipos que perpassam a sociedade moçambicana, destacando que o passado e os antigos colonizados são uma preocupação residual no discurso político e jornalístico moçambicano, cuja evocação surge sempre nas celebrações das datas históricas.
Segue-se a entrevista.
Este livro que acaba de lançar resulta de uma pesquisa das representações sociais de diferentes fenómenos como a independência de Moçambique, os estrangeiros e cidadãos moçambicanos de origem europeia no país. Considera este um livro que gostaria de ler?
Sim. É um livro que eu gostaria de ler. A abordagem é um pouco mais alargada. É também uma análise das auto-representações dos moçambicanos que têm voz no SAVANA, da forma como representam o envolvimento dos mais jovens nas celebrações das datas históricas, da forma como representam as elites do país. Acho que é um livro que procura questionar as condições que estão por detrás de todas essas representações sociais, inclusive do próprio investigador. Talvez por isso seja um livro que eu gostaria de ler.
Em que medida o facto de ser um pesquisador de raça branca, ainda por cima de nacionalidade portuguesa, influenciou a sua pesquisa, tendo em conta o passado colonial, assim como o facto de as representações que os ex-colonizados têm dos colonizadores ainda ser um tema muito sensível em Moçambique?
Eu não tenho raça. A minha raça sou eu mesmo: João Feijó. João para os amigos. Como escreve Mia Couto, cada homem é uma raça, cada pessoa é uma humanidade individual. Em relação à minha nacionalidade ela foi-me imposta, não tive hipótese de a escolher. Num contexto de globalização acho que quando falamos em nacionalidades importa ter em consideração uma série de fenómenos relacionados com os grupos de pertença e com os grupos de referência de cada pessoa. O destino quis que eu nascesse português, vivi na Finlândia, vivi em Moçambique, trabalhei na Holanda. Há símbolos identitários com que eu me identifico que não têm nada a ver com uma suposta identidade nacional portuguesa. Uma identidade constitui uma página em branco, onde cada um vai desenhando o seu próprio percurso ao longo da vida. E depois a identidade nacional é muitas vezes estratégica. Muitos moçambicanos têm passaporte português e vice-versa. Escolhem o passaporte a apresentar consoante o interesse que têm a cada momento. Se eu for criticado como português a tendência se calhar é que me defenda como português e não como sociólogo, como fotógrafo, como benfiquista ou como outra coisa qualquer. Na altura da escolha do tema de investigação eu estava na universidade de Jyväskylä, na Finlândia, inserido num programa de mestrado em Intercultural Communication. Na minha turma tinha colegas de sete países europeus. Muitos de nós tínhamos como objectivo fazer uma pesquisa em contextos de alguma tensão sócio-cultural. No meu caso lembrei-me de Moçambique. A minha família viveu aqui até finais dos anos 70 e as memórias que trazem é de conflito, muito na sequência dos acontecimentos de 7 de Setembro e de 21 de Outubro. Achei interessante analisar o outro lado da história, nomeadamente como é que os moçambicanos representam hoje, várias décadas após a independência, o passado colonial, os colonos portugueses e os estrangeiros que regressam a Moçambique. Acho que era algo que era uma incógnita para a maioria dos portugueses. Talvez tenha sido uma resposta a uma questão identitária. Acho que precisava de ser um Outro, ou ver a minha suposta cultura aos olhos de um Outro, para ser eu mesmo. Ajudou-me muito a crescer como pessoa. Não só como académico.
Para além das pesquisas bibliográficas e da análise dos artigos dos jornais, frequentou espaços públicos como restaurantes, bares, cafés, palestras, seminários a fim de efectuar uma observação participante, uma situação que também se deveu ao facto de ter tido um contrato de trabalho no país. O que achou mais impressionante nesses contactos com diferentes grupos sociais?
Talvez o que tenha achado mais impressionante nos contactos foi a influência da cor da pele na estruturação das relações sociais. As relações são muito racializadas. Rapidamente me apercebi que em muitos sítios era melhor tratado por ter uma pele mais clara, mesmo que não estivesse vestido em conformidade com a ocasião. Senti também que muitas pessoas procuravam criar amizade com o objectivo de daí retirar benefícios. A fronteira entre a simpatia e o interesse é muito ténue. Foi para mim apaixonante tentar compreender que condições sociais, económicas e históricas estão por detrás destas representações do Outro, destas formas de relacionamento.
A reconstituição da memória colectiva está muito na moda, tanto mais que o poder político perdeu o monopólio da manipulação da memória com a derrocada do socialismo em Moçambique. Em que medida as versões contrárias da chamada história oficial reforçaram esta sua pesquisa?
Todos os países têm necessidade de ter uma história oficial de cariz nacionalista, mais ou menos coerente, difundida nos manuais de história, nos rituais e discursos políticos, nas encenações oficiais. Essa visão oficial do passado tem um efeito útil, o de conservar a unidade nacional, a autonomia do país ou legitimar as elites. É um fenómeno estudado e Moçambique não me parece que seja excepção. Em países democráticos, onde há liberdade de expressão, naturalmente os vários grupos sócio-económicos têm mais liberdade de expressar as suas versões da história e contribuem com novos pontos de vista, com novos factos, questionando a tal unidade nacional ou os interesses dos grupos dominantes. Uma vez que o meu objectivo de pesquisa era a análise das representações sociais do passado a partir dos discursos jornalísticos do SAVANA, neste contexto de liberdade de imprensa apareceram múltiplas versões da história. Cada uma delas é mais um contributo para a compreensão do passado.
Prestou mais atenção nas celebrações das datas históricas de Moçambique, mais concretamente nos meses de Junho e Setembro entre 1998 e 2003. Embora as datas históricas sejam lugar em que os mais novos aprendem mais sobre o passado, elas têm o problema da partidarização, uma espécie de manipulação da memória por quem detém o poder. Como foi para si lidar com esta problemática?
Foi muito interessante confrontar os discursos oficiais com as interpretações dos mesmos discursos e procurar compreender a partir daí algumas dinâmicas da sociedade moçambicana. É interessante analisar o desinteresse dos mais novos relativamente a esta questão, confrontados que estão com novos desafios relacionados com o emprego, com o transporte, com a habitação. Mudam-se os tempos mudam-se as prioridades.
Nas suas pesquisas, chegou à conclusão de que a independência de Moçambique, em termos de representação social, é um valor máximo. Mas ao mesmo tempo dá a entender que a euforia do pós-independência deu lugar a novas relações de poder em que o conceito de independência esgotava-se na independência em relação aos ex-colonizadores, mas as liberdades individuais mantinham-se sufragadas pelo novo poder – era o socialismo. Depois veio a democracia, com a conquista das liberdades individuais. Que ilações tira nesta história recente no tocante às representações sociais do fenómeno estrangeiros?
Bom, o que eu concluí foi que nos discursos sobre a independência de Moçambique há um período histórico que é claramente destacado de uma forma muito emotiva e até saudosista, que é precisamente o período revolucionário imediatamente a seguir à independência. Nos discursos sobre esse período transpira uma esperança e uma expectativa colectiva pela construção de uma nova sociedade, livre da dominação colonial, onde todos tivessem oportunidade de prosperar. Aí parece haver um consenso entre todos os emissores de opinião do SAVANA, independentemente das suas filiações partidárias. Agora é preciso ver que a maioria das pessoas que tiveram voz no SAVANA no período analisado pertence a elites políticas, no poder ou na oposição. E esse facto de estarem no poder ou na oposição condicionou bastante o balanço que fizeram do passado. Parece-me que as críticas à falta de liberdade, ao socialismo, ao monopartidarismo ou ao investimento estrangeiro em Moçambique devem ser entendidas num contexto de luta política-partidária. Pessoalmente não consigo compreender as sociedades sem analisar os processos de luta entre os actores sociais pelo acesso ao poder, seja ele na política, nas empresas ou nas universidades. O facto de num contexto de liberalismo económico muitos cidadãos, nacionais ou estrangeiros, concentrarem em si uma grande quantidade de riqueza torna-os mais expostos à crítica social, sobretudo se não redistribuírem a riqueza.
E quanto aos cidadãos moçambicanos de origem europeia?
Tal como diz, são cidadãos moçambicanos. Têm diferenças culturais relativamente a outros cidadãos moçambicanos, de origem africana ou asiática, tal como estes têm diferenças entre si. Por comodidade atribuímos às pessoas do mesmo grupo os mesmos comportamentos e características e esquecemo-nos que quanto mais numerosas forem as nossas pertenças, mais específicas e únicas se tornam as nossas identidades.
Phillipe Gagnaux
Há quem entenda que a democracia, na sua maturidade, como sendo a defesa das minorias, o respeito pelo singular, pelo diferente. O que pensa dessa premissa, tendo em conta que o seu estudo mostra que os moçambicanos de descendência europeia são um grupo representado pela negativa, destacando-se com frequência os benefícios de que goza esta população, assim como a ilegitimidade de acesso ao poder?
Há um período aquando da candidatura de Phillipe Gagnaux à presidência da câmara municipal de Maputo, que se publicaram no SAVANA, opiniões onde o que constituía notícia não eram as ideias do candidato, mas a sua origem racial e o passado histórico de subjugação das populações africanas aos poderes coloniais. Lembro-me que na reportagem o SAVANA entrevistou outros moçambicanos ali nas barracas do Museu, para quem a questão racial não parecia ser tão relevante. Julgo que faltam estudos em Moçambique sobre este assunto, mas acho que estes fenómenos de deslegitimação do Outro, seja com argumentos de cariz racial, de origem geográfica ou de género devem ser entendidos num contexto de competição pelo acesso a recursos de poder escassos. Julgo que é precisamente no momento em que alguém surge como uma ameaça que se criam condições para que seja desqualificado, precisamente por quem se sente mais ameaçado, neste caso politicamente.
Directa ou indirectamente, acabou estudando a problemática do racismo em Moçambique, recorrendo à sociologia da representação social. Há racismo em Moçambique?
Existem diferentes culturas em Moçambique que tendem a criar redes de sociabilidade intra-grupais, tanto por motivos culturais como económicos. Mas muito facilmente se racializam essas relações sociais. Explicam-se muitas vezes os comportamentos das pessoas simplesmente recorrendo à raça, como se estivesse irremediavelmente no sangue das pessoas, como se não pudesse ser explicado nas condições sociais de existência.
Mas que ilação tira sobre o facto de ter encontrado apenas um entrevistado de nacionalidade portuguesa a falar do passado colonial nos jornais que analisou?
Nas peças jornalísticas seleccionadas só encontrei um português entrevistado mas não apareceu a falar sobre o passado colonial. Veio desmentir um problema de discriminação racial denunciado por trabalhadores moçambicanos na sua empresa. Trata-se de uma questão que de facto também gostaria de colocar. Presumo que, por um lado, possa ser explicado pelo carácter partidarizado das celebrações da independência de Moçambique. Por vezes fiquei com a impressão que o SAVANA se assumia como que uma praça pública onde as grandes vozes políticas contrapunham argumentos e visões da história, num contexto de abertura democrática. Em qualquer país, as celebrações da independência não deixam de ter uma função identitária, de celebração colectiva. Estes rituais marcam muito a distinção Nós-Eles, heróis-vilões. Pessoalmente, acho que seria interessante entrevistarem por exemplo a parte portuguesa que assinou os Acordos de Lusaka, confrontarem perspectivas e opiniões. Sei que alguns têm negócios aqui em Moçambique e se calhar vão ser mais oficiosos, mas acho que terão histórias interessantes para contar.
Nos diferentes capítulos, começa com citações de extratos de textos de individualidades como Mia Couto, José Craveirinha, Carlos Serra, Afonso Brandão, Eduardo Mondlane. Que análise faz das representações sociais em estudo nessas citações?
Acho que cada uma das citações constitui um excelente resumo de cada capítulo. Seria muito moroso explicar agora cada uma delas.
Associa-se o desenvolvimento rápido do Japão ao facto daquele país ter seguido um modelo que não limitou muito as liberdades individuais, conciliando, ao contrário da China, a tradição e os valores trazidos pela democracia. Como analisaria Moçambique, olhando para as opções do Japão e da China?
Não sei se concordo com essa tese de o desenvolvimento rápido do Japão se dever ao facto de não ter limitado as liberdades individuais. Na China as liberdades individuais são muito limitadas, pelo menos da forma como são entendidas nas democracias ocidentais, e o país tem apresentado índices de crescimento muito rápidos. Acho que o desenvolvimento rápido do sudeste asiático se deve a outros factores, começando talvez pela existência de uma ética pelo trabalho e por um forte envolvimento em relação à empresa, desconhecidos na maior parte do globo. Agora podemos discutir modelos de desenvolvimento. Interessa sobretudo a rapidez ou outros valores como o respeito pelos indivíduos, pelas suas tradições, pelo meio ambiente? É um debate em construção.
SAVANA – 20.11.2009