Por António Cabrita
Nos últimos meses tem corrido nas televisões moçambicanas um anúncio que me diverte: uma tal «Livraria Central» de Nampula anuncia os seus artigos em promoção e o apresentador desunha-se em descrever os inúmeros produtos de papelaria e electrónica, em stock, numa variedade de facto notável, e acaba com o prato forte, umas lambretas em promoção, de facto uma pechincha. O espantoso no anúncio é que saímos da promoção convencidos de que não existe um livro na Livraria Central. Por que não mudar de nome se o estabelecimento sofreu tão acentuada mutação?
O mesmo tipo de desfasamento, entre o que se anuncia e o que se poderia esperar de quem anuncia, se tem verificado na generalidade em todos os pleitos eleitorais realizados em África. Enveredar pela democracia para ter o doce ensejo de “a perverter”, tem sido, não há dúvida, o desígnio das nações africanas.
A democracia não foi feita para o africano, diriam Kadafhy e Marcelino dos Santos. Diante do resultado das eleições, é caso para reflectir nos sentidos primeiro, segundo e último de tais convicções. Faço um paralelo, há uns meses justificava na polícia um violador de 21 anos de uma miúda de 6, acto que perpetrou no espaço de uma igreja: «ela entrou na igreja e insistiu-me, enquanto eu não queria…». A democracia também não era querida por ninguém, insistiu-lhes. Que o diga o grande perdedor do pleito, Afonso Dhlakama, o «pai da democracia» que face à evidência duma derrota legítima ameaça com uma nova violação da criança.
Aos observadores internacionais nada mais resta do que confirmar que as eleições foram serenas e ordeiras. É sempre sereno e ordeiro o rebanho que à noite regressa ao redil. O povo foi ordeiro. E votou, nada a dizer. Ainda que minoritário, apenas cerca de 37% (números redondos). Trinta e sete por cento que deu ao partido no poder uma retumbante vitória de 80% (números redondos): é a quadratura do círculo.
É hoje evidente - já o escrevi e infelizmente repito-o - que a democracia em África ainda não visa a mediação, sendo antes o aparato que permite identificar o bode expiatório. O propósito oculto das eleições é o sacrifício simbólico do bode expiatório: a oposição!
Na realidade, a única coisa que se parece ter consolidado na experiência democrática dos últimos 15 anos é a teia com que a Frelimo foi humilhando paulatinamente nas urnas o «bandido armado» que quase lhe arrancou o país dos braços, numa guerra militar. A democracia foi apenas o instrumento para desferir o golpe final da vingança sobre o «bandido armado». Agora é um capítulo que se pode fechar, pois a relação que se criou com a democracia foi de heteronomia (uma prótese exterior a mim de que me sirvo, acidentalmente, sem transplante ou simbiose) e não de implicação, de convicção. Ainda que seja uma vitória legítima, só um democrata dissimulado é que consegue regozijar-se com uma vitória de 80 %, 85% num pleito eleitoral.
A teia foi armada e fim mais brutal e irónico não pode haver para «o pai da democracia»: a esfola foi pública, um linchamento servido com o requinte de se terem seguido as regras do jogo. As regras que Don Afonso se gaba de ter imposto.
Os engenhosos do FMI que impuseram mecanicamente o sistema democrático em África cometeram a mesma barbaridade, o mesmo dislate, que cometeram as potências coloniais quando dividiram o continente a régua e esquadro, sem terem em conta as nações africanas e as especificidades étnicas. Não fizeram o trabalho de casa, não estudaram, portaram-se como luminárias que pensam ainda como se Freud e um século de antropologia não tivessem existido, sem perceber que cada sociedade se cria a si própria e que ao criar-se a si mesma cria um mundo próprio, de clausura cognitiva, de clausura informacional, de protocolos e ritos sociais distintos.
Vou falar de uma dimensão oculta, que pertence ao universo do não-dito, e interrogar até que ponto tal dimensão colide ou não com as flutuações de sinal características de uma democracia.
Evidencia-se ainda no comportamento de metade dos africanos (o que não deixa de reflectir-se na estratégia dos partidos políticos em África) traços que os aproxima da tipologia dos comportamentos sancionados nas sociedades orais, e que se move com “uma outra lógica das coisas”, do tempo, do espaço, etc.
Neste tipo de “mentalidade mágica”, digamos assim, aspira-se a um conhecimento total e a uma classificação exaustiva da realidade, com a qual se procura excluir por princípio qualquer acaso, qualquer imprevisto, contingência ou acidente. O que explica que todo o comportamento ou acontecimento desusado - a adopção de uma nova técnica, o nascimento de um albino ou a chegada de um estranho - sejam percebidos como causas de inquietude e de grandes desgraças para a comunidade pois são contactos com “o impuro”, abertura ao mundo que escapa à regra, onde tudo se transforma e nada está garantido.
Daí que o simples acto de inauguração de uma ponte necessite previamente de uma «cerimónia tradicional» que traga à ponte a benevolência dos espíritos; daí que pareça sempre mais «lógico» que a morte de um homem tenha sido produzida por «mau-olhado» ou por um «espírito agastado ou enfurecido» do que por um mero vírus ou acidente. Esta “suspeita” está continuamente presente no quotidiano laurentino quanto mais no país profundo (basta andar de chapa e ouvir as conversas).
Endereçava-se Fernando Gonçalves, na Tribuna do Editor da semana passada, a alguém que no jornal Escorpião havia «treslido» um editorial seu e ripostava: «Fundamentalmente, não comungo da sua ideia de que alguém, pelo simples facto de ver as coisas a partir de um ângulo que seja diferente do meu, esteja ao serviço de agendas externas».
As “agendas externas”, simbolizam, no fundo e sempre, essa causa externa, transcendente, com que um pensamento (ainda) mágico procura explicar que alguém tenha um ângulo diferente do seu. É preciso ainda contabilizar os milhares de vezes que - quando alguém quer desvalorizar um outro articulista - na imprensa em Moçambique se recorre ao “argumento” do outro estar ao serviço de “uma agenda externa”? É todos os dias. Em Moçambique, o que dá um extraordinário e deprimente auto-retrato, ninguém tem direito a ter ideias próprias sem ser acusado de estar ao serviço do “exterior”, do “inimigo”, do “outro”, de um transcendente, pois ele próprio não seria apto. Este tique (auto-depreciativo) é ainda uma reminiscência do pensamento mágico onde o ascendente (o antepassado, o espírito) é sempre mais valorizado que o existente. Só se existe em função do Outro, que manobra no escuro - nunca autonomamente.
Os políticos mais atentos e inteligentes têm consciência disso (- aliás, cresceram nesse meio). Não nos esqueçamos que o Presidente Guebuza começou esta campanha eleitoral por uma cerimónia de «purificação» tradicional. Era uma clara mensagem política para um país que conhece.
Assim, a magia explica-se por esta necessidade de em tudo encadear numa causalidade que torne o imprevisto impossível. Um universo mágico é pois um mundo saturado de significação e menos permeável à mudança, por causa da função que a cada coisa é de antemão atribuída. E neste contexto, onde a tradição joga tudo, é difícil aceitar a novidade, o que coloca em risco o esquema, a intrusão do inesperado - o que vem do exterior - sem o ver como possível causa de inquietação e calamidade.
Ora, para aceitar a democracia como resgate de um diálogo interno a cada cidadão é preciso estar-se habitado por um espírito crítico capaz não só de colocar dúvidas como de pôr-se em dúvida, aceitando a sombra do inesperado, do impensável, do exterior ao sistema. É preciso superar o medo da insegurança, lidar com ela, aprender a viver em crise permanente. O que não é admissível para um sistema mágico, mesmo que funcione de forma latente e não admitida, onde pôr em dúvida ou suspender uma parte é provocar uma crise no todo.
Por isso, em África (constato, não ajuízo) a dimensão crítica (tão incensada em certos países europeus) foi sempre preterida pelo sentimento de pertença.
A trindade de princípios saída da Revolução Francesa e que são hoje o ADN dos Direitos Universais do Homem: Liberdade, Igualdade e Fraternidade: talvez não encaixe no universo da tradição africana, onde seria mais correcto: Solidariedade, Complementaridade, Fraternidade.
Na sociedade africana tradicional cada um tinha a sua função e todo o mundo era solidário. Aquele que perdia a sua função perdia a sua razão de ser, e se não era solidário com os outros, perdia também o direito a ser assistido. Consequentemente, o individualismo ocidental não cabia na sociedade africana. Nem as suas dimensões correlatas: a crítica e o apego à liberdade.
No imediato da pós-colonização, os povos africanos, por influência do marxismo-leninismo quiseram rechaçar as tradições, romper com a sua lógica emocional. Hoje, em toda a África assiste-se a um ressurgimento das tradições, ainda que mescladas numa feijoada ou encruzilhada de dinâmicas de que o desenvolvimento de fachada moderna não está arredado. Mas na África de feição tradicionalista, Kadhafi e Marcelino dos Santos terão razão: não há lugar para a democracia, a qual pressupõe “uma lotaria” que a sua lógica não consente. Não sei se isto não explicará uma parte da abstenção, o desinteresse das pessoas pela coisa política. Aliado evidentemente e sobretudo ao facto das pessoas estarem isoladas e não haver qualquer esforço social para que essa situação se minore.
Dir-me-ão, mas as coisas não são deterministas, há uma classe de indivíduos letrados que nasceram já noutras condições, que estudaram, e têm sobretudo uma vida urbana e uma convivência com as marcas da modernidade. É verdade, mas são uma minoria. E além disso, mesmo nas cidades, entre estes podemos encontrar três tipos de atitude: a) os que experimentam emocionalmente, sem o racionalizar, o conflito de paradigmas (entre estar com a tradição ou com a modernidade) que hoje é visível na sociedade moçambicana; b) os que acharam uma síntese e têm diversas “personalidades situacionais”, gente que pode por exemplo usar “a razão instrumental” como professor, por exemplo, e entregar-se a práticas espíritas, ou crenças no curandeirismo na vida privada; c) os que coabitam no espaço e no lugar mas têm uma concepção de vida e uma funcionalidade profissionais alheias a qualquer marca ou resíduo tradicional. Portanto, mesmo nas cidades ainda se está sob influência.
Daryush Shayegan, um iraniano, que escreveu um ensaio notável, Le Regard Mutilé, sobre o ensarilhamento dos países tradicionais face à modernidade, ajudar-nos-á a explicar estas contradições. Diz ele: «Nos conflitos de paradigma que opõem ainda nos nossos dias o Terceiro Mundo ao Ocidente, chegou-se a uma situação intermediária onde as duas épistemes (dois padrões de cultura) se encontram e se desfiguram uma na outra. (…) Podemos viver assim um período de “atrasos epistémicos”, nos quais os que sustentam uma épisteme arcaica se enfrentam com os precursores de uma nova grelha conceptual do mundo (…) Nós podemos ter mesmo uma situação particular em que as duas épistemes heterogéneas operam no interior de uma só e mesma pessoa, cegando, paralisando as suas faculdades críticas. (…) Caracterizando esta esquizofrenia epistemológica, presente nos intelectuais sul-americanos, Octávio Paz escrevia: ‘As ideias são as de hoje, as atitudes são as de ontem!’». Por que é que isto me parece um retrato chapado de Moçambique?
Ou seja, os hábitos culturais compelem os eleitores a pertencerem a uma linhagem, para além do juízo que façam sobre o trabalho político entretanto por aquela realizado, e condicionam as emoções dos eleitores - é quase como um chamamento do sangue. Esse chamado do sangue é irresistível, quase uma reminiscência mágica, quando as alternativas não são críveis.
Este é um aspecto negligenciado (o medo de cairmos na alçada do «exótico» não nos deve inibir) que talvez faça subsistir uma estabilidade de votos dirigida a quem estiver no poder - e de uma forma quase incondicionada.
Claro que não tenho o delírio de pensar que esta seja uma leitura pouco mais que parcial. Muitas das verdadeiras explicações encontram-se nas razões já apontadas por muitos analistas políticos. Esta é apenas uma fatia estreita do bolo.
Mas não bastam a denunciada batota política (que afinal não levou as pessoas a votarem contra a Frelimo, em protesto) nem a evidência de que a oposição moçambicana perdeu qualquer crédito para explicar o pleno da Frelimo, que, com as alternativas já de cócoras, reuniu, o que é espantoso, até o voto dos seus próprios descontentes. Há aqui uma inevitabilidade que não se compadece com exclusivas leituras políticas comuns.
Estas eleições, parece-me, foram a demonstração de que as questões culturais são mais fundas que as políticas, que o que está em jogo em muitas eleições africanas, mais que as manifestações episódicas dum sistema político, é no fundo a expressão de um conflito entre paradigmas culturais. Neste sentido, as agendas políticas são apenas espectáculos previamente combinados e com as palmas e as ovações previamente gravadas.
Neste momento, impõem-se as questões: a) nesta situação não seria preferível que as sociedades africanas desenvolvessem os seus modelos endógenos de representação política, de forma a devolver alguma seriedade aos ritos políticos, acabando com estas caricaturas pungentes?; b) neste contexto, a que triste e ridículo papel se prestam a fazer os Observadores Internacionais das Eleições? É ao que tentaremos responder.
SAVANA – 06.11.2009