Por António Cabrita
O que é que assusta nesta unanimidade? A sensação de que não se vai respeitar que «os defeitos da democracia pedem mais democracia e em nenhum caso menos». Quem o prescreve é o indiano Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia, num livrinho notável, O Valor da Democracia, onde primeiro demonstra que os gérmenes da democracia não têm uma exclusividade eurocêntrica e, depois, sublinha o valor da mesma, discutindo os seus efeitos sobre a economia das sociedades asiáticas. Como ele observa, é estranho que ninguém discuta os méritos da democracia em países como os Estados Unidos, a França, ou a Inglaterra, mas que o sistema democrático tenha uma face tão conturbada e controversa nos países pobres em vias de desenvolvimento, precisamente onde uma maioria de pessoas sonha virtualmente em emigrar para os países democráticos - pois quem aspira em emigrar ou em colocar os filhos a estudar numa ditadura? É uma hipocrisia, não é?
E explica o economista indiano que, se não existe forçosamente uma relação clara entre crescimento e democracia, tornando plausível qualquer outra direcção, há no entanto um amplo consenso sobre as “políticas eficazes” em matéria económica, as quais dependem de uma abertura à competência e aos mercados internacionais, da existência de incentivos públicos (créditos) como o fomento à importação e exportação, de um aumento no nível de alfabetização e escolarização, e de outras oportunidades sociais que ampliam a participação no processo de expansão económica, lembrando que existem «evidências contundentes que mostram que o que se necessita para gerar um rápido crescimento económico é um clima económico cordial, mais que um sistema político hostil»: ou seja, o consenso admite, as condições exigíveis só são compatíveis com a democracia.
Que é que isto tem a ver connosco? - perguntará um empenhado militante da maioria triunfante.
A minha mãe, quando caiu o fascismo português, ficou muito surpreendida porque se falava muito de liberdade e ela sempre se sentira livre. É verdade, ela sentia-se livre para tomar as suas decisões - compro banana ou manga? - mas havia uma enorme fatia de coisas sobre as quais ela (sob a coacção do medo) não se admitia ter opinião e, além destas, outra enorme fatia de coisas impensáveis para ela. Um sistema democrático é o que nos permite ser surpreendidos por coisas impensáveis até então.
Esta é a verdadeira liberdade: a que se situa para lá do reconhecimento, do já traçado, dos limites que a opinião dominante configura.
O limite que nos condiciona é a ideologia.
A ideologia - definiu-a como ninguém Pierre Bourdieu - é uma teia de aranha. E talvez as pessoas não saibam que o resto dos outros insectos não vêem a teia e por isso é que caem nela. Só o nosso sistema ocular é que tem a acuidade visual para distinguir os fios de seda da luz circundante. Os insectos não, e caem num invisível viscoso que os prende, vendo vir flutuando no ar o anjo negro que é a aranha. A ideologia é a mesma coisa - invade-nos, condiciona-nos sem darmos conta, leva-nos a acreditar que são naturais (ou seja, imemoriais) ideias que são de ontem, convencionadas e artificiais, e depois infecta-nos. E julgamos que é angélica e paira no ar, como a aranha.
A ideologia coage-nos, converte os homens em rãs, que acham que não existe mais que o seu charco. O nosso trabalho como homens, se tal existe, é distanciarmo-nos dessa lógica restritiva que nos cega à feliz complexidade do mundo.
Em Moçambique o meio ambiente abafa os impensáveis, a ousadia. E basta ser professor em Moçambique para se constatar que o medo é um dos passos mais afinados no trilho da iliteracia - coisa com que nenhum dos triunfais comentadores destas eleições parece estar preocupado.
Porque tudo se paga, e 75 % de voto nas urnas têm uma consequência directa, ou antes subliminar, no seio da massa estudantil. A grande maioria dos alunos manifesta já uma enorme dificuldade em ser autónoma, assertiva, tem entranhado um mecanismo de recalcamento que os coage a não-interpretar um texto (sisso seria tomar uma posição sobre algo, coisa proibida!), e “os alivia” de relacionar b com c, dando o salto para o pensamento abstracto. Basta pensar no diferencial gritante que existe entre o número de universidades existentes neste momento no país e o pouco que se produz ao nível do saber e do pensamento académico.
Sem «pensamento abstracto» não há estudante digno desse nome e pode-se até ter o canudo que se quiser que só se obterá uma incompetência vitalícia para qualquer cargo. O que talvez seja colmatável com o Cartão do Partido, mas não ilude a incompetência de base, o medo a ser e pensar.
Ainda não se interiorizou que não existe a escola de um lado e a sociedade de outro, que o aspecto repressivo do poder (mesmo quando não se trata de uma militarização da vida civil mas do doce aguilhão de uma maioria que silencia o debate público) condiciona as possibilidades de compreensão, de um saber aprofundado e o envolvimento ético-político do saber. Tem o ensino uma dimensão ético-política? É inevitável, aprender não se trata de um mero jogo ou adição de palavras e de conteúdos, mas sim de encaixar na nossa vida corrente as “formas de vida” que os conteúdos trazem consigo; sendo que aquelas, para serem acolhidas, necessitam de condições favoráveis. Se só pudermos transmitir os conteúdos, esvaziados das “formas-de-vida”, a recepção não se dá. Seria o mesmo que dar aulas teóricas de natação, insistindo tolamente em que o aluno pratique na areia. Nenhum nadador da areia está preparado para uma competição.
A brasileira Teresinha Azeredo Dias, uma teórica das questões pedagógicas, explica a coisa convenientemente: «a tarefa do professor, do educador competente, é estabelecer o diálogo do professor com o real». Sim, a minha prática diz-me que só no interminável diálogo com o real é que os conceitos se tornam pregnantes, entendidos. Ora, quando existem factores intra e extra-escolares que interferem e tornam proibido falar do real…
Ademais, ensino e liberdade andam forçosamente a par, posto que a liberdade não é um dado imediato, como crêem os teóricos dos direitos naturais, mas sim o resultado mais importante da educação. Quando se almeja um sistema onde só se pense o que esteja autorizado perdem-se as duas coisas: a liberdade e a possibilidade de um “saber que saiba”; o qual não dimana de uma mera percepção do real mas de uma percepção da percepção, uma operação de segundo grau: isto é, o saber que se reproduz só se interioriza quando é transformado, quando fomos nós o agente da transformação.
Por isso é perigosamente ingénua, e até decapitadora, a ideia que já vi defendida por grandes dirigentes do país de que estão criadas as condições para o salto de desenvolvimento do país porque a informação está toda na Net. Fechem uma dúzia de iliterados durante dez anos num quarto com doze computadores, as barrigas fartas e os melhores estímulos: nunca dali sairá uma peça de Shakespeare.
Pensar resulta de uma agressão, acontece sempre contra e não a favor da maré. Eu gostava que um só dos felizardos 75% dos votantes me dissesse: «eu estou muito feliz porque o meu filho vai ter medo de pensar… ou melhor, nem vai ousar!». Que pai seria este? Moçambique criou uma expressão para definir esta condição: «está marasmado!».
Por isso, o que pode parecer uma grande vitória para o partido ganhador pode vir a ser um ganho da avestruz, que com a cabeça mergulhada na areia tépida deixa de ver a Realidade que lhe passa ao lado.
O compromisso, a grande aventura que se coloca à nossa frente é esta: como passar da (obsessiva) ideia de dominação para a do consenso. Há que empreendê-lo de uma forma corajosa, realizando o paradoxo de confluir para as diferenças. Não se trata de tolerar as diferenças, mas de respirá-las. Só a partir daqui é que a reciprocidade, um vínculo definidor de saúde social, possibilita um sentimento democrático intrínseco e não postiço.
Provavelmente, haveria vantagem em que os novos intelectuais africanos - não me dirijo aos «intelectuais orgânicos», esses estão “assimilados” - pensassem em modelos políticos e societários mais consentâneos com a sua realidade e menos importados. Que os jovens tivessem a coragem de se associar - rejeitando de todo a influência dos mais velhos, ainda ligados a esquemas ou ideologias caducas - e de pensar organicamente um novo modelo societário que permitisse que os ritos sociais voltassem a estar investidos de seriedade.
No meu contributo, (e para acabar com isto) quero falar-vos de algumas especificidades da democracia ateniense que se mantêm inéditas e que podem fornecer o mote para uma discussão alargada, que compare esses dispositivos com mecanismos da experiência tradicional africana.
SAVANA – 20.11.2009