Duas viaturas estão estacionadas junto à berma da estrada, uma da Polícia, cujos agentes se encontravam em número relativamente excessivo pela aldeia e a outra de um programa ligado à epidemiologia junto da Direcção Provincial de Saúde. Na verdade, uma aldeia fantasma que dificultou à nossa Reportagem começar a fazer quaisquer perguntas. Ninguém parece disposto a ver ninguém estranho. Parece não haver quem possa satisfazer alguma curiosidade.
Do outro lado da estrada está postada uma urna (janessa, na língua local) à porta de saída frontal duma casa, muito próximo do local onde, em dias normais, sempre se expõem cachos de banana-maçã, à venda para os passageiros que fazem Pemba/Montepuez ou Nampula/Montepuez. Há muitas mulheres enroladas em capulanas de cores apagadas, mas sobretudo cobrindo as suas cabeças, sinal de que se tratava, na verdade, duma infelicidade resultante da morte duma mulher bem conhecida. Os homens estavam circunscritos à varanda da referida casa, poucos, é verdade, porque na aldeia, afinal, não há tanta gente assim, há muitos que faziam quatro dias que não se sabia do seu paradeiro e outros poucos já se encontravam no cemitério a fazer a campa que acolheria a defunta.
É uma mulher que padecia de cólera e se encontrava no leito do Centro de Tratamento da doença, quando no dia 11 há uma agitação que no seu ponto mais alto culminou com actos de vandalismo envolvendo populares da mesma aldeia e a Polícia, na sequência da agressão a agentes da Saúde acusados de serem os disseminadores daquela doença potencialmente mortífera.
Os populares, disseram-nos mais tarde, foram tão violentos que dispersaram todos os agentes da Saúde, incluindo a directora distrital de Saúde, Laurinda Salimo, que fugiram em debandada à procura de lugar seguro e depois para a sede do distrito. Cá atrás, os manifestantes dirigem-se ao Centro de Tratamento de Cólera, que o vandalizam e arrancam o soro nos respectivos pêndulos ligados a quem precisava de cura urgente.
A mulher que morreu no domingo passado, cujo funeral se realizou na presença da nossa Reportagem, estava no grupo de quem estava a beneficiar desse tratamento na altura em que os seus conterrâneos, da mesma aldeia, se decidiram por interromper o tratamento por via da violência.
Lá no interior da aldeia vemos um aglomerado de pessoas, ao que nos parecia tratar-se de um mercado. Já próximos, descobrimos que eram camas de cilha (quitandas) que acolhiam 25 pacientes, no que é actualmente o novo CTC (Centro de Tratamento de Cólera), reconstruído teimosamente pela Saúde depois que o ambiente de violência amainou. Dez eram dados como entrados nas anteriores 24 horas, no mesmo período em que se registou o óbito atrás referido.
Uma médica em serviço, em face da nossa apresentação, disse que esperássemos por uma delegação do Governo do distrito que se encontrava de visita à aldeia, pois para ela não restava tempo para declarações à Imprensa. Metemo-nos pela aldeia adentro, não visualizamos delegação nenhuma, mas, finalmente, encontrámos o verdadeiro mercado.
Aliás, três mercadinhos de venda de peças de vestuário… e também produtos alimentares, entre bolinhos, bananas, badjias, cobertos de plásticos, sim, mas em horríveis condições de higiene e muitos galões de combustível, principalmente gasolina, porque a aldeia de Muaja tem no mínimo 35 motorizadas, segundo nos disseram.
Os negociantes, em conversa com a nossa Reportagem, dizem que o dia 11 foi fatídico, que a aldeia está sem Governo, porque os chefes fugiram nesse dia deixando o “rebanho” à mercê do acaso. O secretário da aldeia, João Canino, abandonou a aldeia com toda a sua família, ninguém sabe dizer onde pára, o líder tradicional idem, e aqui atrás o régulo, que é a figura mais importante que o fugitivo, mas não vivendo na aldeia Muaja pretende indicar um novo, que não foge em situações em que os seus dirigidos entram colectivamente em perigo.
Durante as voltas que demos pela aldeia, algo nos criou curiosidade. Saídos de uma campanha eleitoral que foi muito renhida, em Muaja só encontrámos símbolos de único partido, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) e a fotografia do seu presidente, o engenheiro Daviz Simango. Não encontrámos em nenhuma palhota ou local público nenhum cartaz dos outros partidos, incluindo a Frelimo, que na Assembleia Provincial elegeu todos os cinco membros pelo distrito de Ancuabe.
Afinal a delegação governamental encontrava-se a 11 quilómetros da aldeia, no rio Umposué, donde os aldeões trazem a água para o consumo e se suspeita seja um foco de cólera. Fomos ao seu encontro e o administrador conta-nos o que efectivamente aconteceu, naquela aldeia, cujos habitantes se encontram deslocados para lugares desconhecidos, mas que ainda mantém muitos doentes de cólera.
Henriques Ndudo, acompanhado de elementos da Polícia, onde reconhecemos Jacinto Cuna, vindo do Comando Provincial, diz que a doença começa a manifestar-se a 6 de Agosto deste ano, trazida por uma criança que acabava de regressar de Montepuez, que depois de morrer toda a gente que interveio no tratamento do seu corpo acabou ficando contaminada.
“Muito rapidamente tivemos seis pessoas com diarreia e vómitos, a seguir oito! A Saúde interveio com análises laboratoriais e conclui tratar-se de cólera, já a 11 de Agosto. Mas logo a seguir à confirmação começam as mensagens de desinformação que na devida altura conseguimos combater, a situação reduziu, saímos de 15 doentes para dois diários ou sem nenhum, até à altura em que concluímos que a situação estava sob controlo e decidimos que em vez duma larga equipa de enfermeiros ficaria apenas um. Continuámos a acompanhar, às vezes era dia sim, dia não”, explica o administrador de Ancuabe.
Entretanto, conforme a fonte, na segunda-feira que calhou a 9 de Novembro corrente, Muaja saiu do nada para ter 15/19 doentes, já com um óbito. No dia 11 foi enviada uma equipa mais reforçada de agentes da Saúde e encontra no terreno um grupo mais ou menos organizado e posicionado para impedir que o pessoal sanitário fosse tratar dos doentes.
“Eram jovens e adolescentes, armados de varapaus, objectos contundentes e armas brancas. Os seus alvos eram os agentes da lei e ordem, a quem conseguiram arrancar uma arma que na devida altura foi usada e o pessoal da Saúde fugiu. Foram ter ao secretário da aldeia, feriram-no à catanada, depois de o terem amarrado. Mas aqui há um outro problema, quem fez isso é o próprio sobrinho dele”, explica Ndudo.
Os insurrectos dirigiram-se igualmente ao posto de fiscalização do Parque Nacional das Quirimbas, local visitado pela nossa Reportagem, que o destruíram, assim como tiveram a mesma sorte as motorizadas que ali se encontravam.
Segue-se o reencontro manifestantes/Polícia, do que resultou na morte de 4 pessoas entre os populares. No dia 12 foram a enterrar, com a participação das autoridades, os corpos dos infortunados e retoma-se o trabalho de sensibilização às populações sobre as reais causas da doença, ao mesmo tempo que eram repetidas as medidas profilácticas e encerramento de alguns poços de água.
Mas já não havia tanta gente a ouvir, porque a aldeia acabou ficando abandonada, por um lado por causa da doença e por outro porque a Polícia já estava a começar a fazer as detenções para a responsabilização de alguns populares já indiciados de terem estado por detrás da manifestação violenta. Entre os aldeões fugitivos contam-se doentes que naquela data se encontravam em tratamentos intensivos no CTC que acabaria por ser destruído. Em resposta a uma nossa pergunta o administrador de Ancuabe responde nos seguintes termos:
“Dizer que se trata da população de Muaja é mentir. São algumas pessoas de Muaja, porque a população de Muaja, depois de restabelecida a ordem, esteve aqui numa reunião popular, no mesmo local onde tratávamos os doentes, houve bicha para serem tratados, até que se registou uma passageira ruptura de medicamentos. Havíamos improvisado o lugar de tratamento aqui e muitas pessoas foram tratadas, desta aldeia”.
Perguntámos a Henrique Ndudo se havia lugar para ligar este fenómeno à política, ou se era verdade que as pessoas confundem cloro com cólera, ou ainda se poderíamos pensar em aspectos de índole supersticioso, ou ainda apenas de ignorância…
“É mentira que as pessoas confundem cólera com cloro. As pessoas já se familiarizaram com o cloro, sabem o que é. Aliás, por mais complicado que seja o nome duma doença, a população retém ou arranja nomes locais mais aproximados. Não tem nada a ver com o nome da doença, porque a cólera existiu sempre e tem nomes locais. Agora, o que nos espanta é que da primeira vez, em Agosto, que viemos para aqui combater a desinformação detivemos três jovens que estariam por detrás da campanha contra. Só que a seguir o delegado do MDM aparece a falar aos quatro ventos de que haviam sido detidos os seus membros. Por outro lado, depois da destruição do CTC apareceram colados símbolos do MDM e do seu presidente. Ora, isso nos complica o trabalho, por isso há um trabalho visando descobrir se neste caso a política encontrou terreno fértil na ignorância do nosso povo ou se haverá mais razões para essa acção incompreensível”.
A Polícia da República de Moçambique, “ferida” pela acção de manifestantes que chegaram a arrancar armas para posteriormente usarem-nas, está no terreno e quer esclarecer todos os casos que entende serem de foro criminal. O comandante distrital, Crisanto Saíde, diz haver já seis detidos e que prosseguem diligências visando trazer mais infractores, que vão sendo procurados em função das informações que vão sendo recolhidas.
A nossa Reportagem, inconformada com a fuga dos habitantes da aldeia Muaja, incluindo os seus chefes, recuou cerca de 20 quilómetros para a sede do posto administrativo de Mesa, na tentativa de conversar com o respectivo chefe do posto. Não o encontrámos naquele domingo, mas já na segunda-feira, Manuel Camilo confirmou-nos, ao telefone, a fuga. Mas em relação ao secretário do Partido Frelimo, que fora amarrado e atingido por golpes de catana, disse saber que se encontrava na localidade de Minheuene, onde está a receber cuidados hospitalares
Era intenção do nosso jornal falar com o delegado do MDM na aldeia Muaja, mas tal como a maioria dos habitantes encontra-se arredio, não se sabendo do seu paradeiro. Não há nenhuma estrutura político-partidária em Muaja e o administrador distrital de Ancuabe, Henrique Ndudo, que sempre insiste em que “o ambiente voltou à normalidade”, acaba sendo o único a representar o poder instituído mais as forças policiais que ali estão em permanência desde os desacatos de 11 de Novembro.
Ndudo de tempos em tempos reúne com os seus quadros ali presentes, debaixo de uma frondosa mangueira, local onde esteve improvisado um CTC antes da reconstrução do destruído pelos manifestantes, para analisar o ambiente envolvente e receber as pessoas que timidamente vão regressando a pouco e pouco à aldeia.
Está-se, conforme Henrique Ndudo, numa altura em que a acção dos líderes tradicionais ou outro tipo de personalidades influentes é muito necessária, para ver se vão convencer as pessoas aonde se refugiaram, principalmente os doentes, a regressarem à aldeia onde já está de novo a funcionar o centro de tratamento.“A nossa prioridade neste momento são os doentes que estiveram internados aquando da manifestação dos insurrectos, depois é que trataremos das outras questões correlacionadas”.
Não foi possível confirmar a informação que recebemos dos vendedores dos pequenos mercados ainda funcionais, segundo as quais, há pessoas a morrer nas matas e os seus familiares levam-nos directamente ao cemitério, com medo de se apresentarem na aldeia, por desconfiarem que a acção policial de busca de quem se suspeita ter estado por detrás da manifestação, lhes atinja.
- PEDRO NACUO