Por Emídio Beúla e Raul Senda
O julgamento do mediático caso Aeroportos de Moçambique é apenas a ponta do iceberg da podridão que reina no sistema, onde as empresas públicas assumem-se como as vacas leiteiras que servem para amamentar a nomenklatura. O réu Antenor Pereira, à data dos factos administrador para o pelouro financeiro dos Aeroportos de Moçambique (ADM), E.P., reconheceu em sede do tribunal que teve conhecimento de um financiamento da empresa para reabilitar a Escola Central do partido Frelimo na cidade da Matola. Mas o réu, ouvido no terceiro dia (quarta-feira) de julgamento, respondeu ao juiz Dimas Marrôa, que preside as sessões, que ignora a pessoa que em nome do partido no poder recebia os valores avaliados em cinco milhões de meticais. “O dinheiro era pago directamente ao empreiteiro”, indicou Pereira, economista de 39 anos, admitido nos ADM por despacho de 10 de Agosto de 2007 do então ministro António Munguambe, também co-réu no Processo nº 92/08/10ª.
Como que a contextualizar o réu, o juiz afirmou antes de o questionar que Francisco Calisto Muchanga declarara em sede do tribunal, numa das fases que antecederam o julgamento, que os ADM financiaram a reabilitação da Escola Central do partido Frelimo.
Muchanga é o proprietário da “Calumínio, Sistemas de Alumínio, Construção Civil & Design de Interiores”, a empresa que reabilitou a escola do partido no poder.
Apesar de insistir que a decisão de financiamento das obras não foi tomada ao nível do Conselho de Administração (CA), o réu não conseguiu responder ao tribunal quem terá decidido.
“Cinco milhões de meticais é muita fruta, quem pôs a mão no fogo. Você era administrador financeiro, prove quem pôs a mão no fogo? O que garante que esse dinheiro foi a Frelimo?”, questionou Morrôa.
Em resposta, o réu indicou que ele tinha conhecimento da saída do dinheiro mediante facturas do empreiteiro que chegavam ao seu gabinete com assinaturas do co-réu PCA dos ADM, Diodino Cambaza, e de um engenheiro do pelouro técnico dos ADM, cujo nome o SAVANA não conseguiu apurar. Lembre-se que no despacho de pronúncia, consta que o partido Frelimo não só beneficiou do pagamento da reabilitação da sua escola com fundos sacados ilicitamente dos ADM, como também recebeu 400 mil meticais para o financiamento de um evento político que teve lugar no Campo de Futebol de Zixaxa em 2008.
Faztudo
Arrolada como declarante, Isidora da Esperança Faztudo é a pessoa que deverá explicar em sede do tribunal os contornos do financiamento dos 400 mil meticais.
Sobre o cheque da SMS com valor facial de 25 mil dólares (os 25 000 USD foram retirados numa das contas dos ADM) passado a Joseldo Massango, que em tempos foi o número dois no Departamento de Trabalho Ideológico do partido Frelimo, Pereira disse ao tribunal que o mesmo sucedeu antes da sua admissão na empresa.
Concursos Públicos
O juiz perguntou ao réu se a empresa observava as regras de concursos públicos para a adjudicação de obras ou serviços.
“Regra geral, sim, observávamos concursos públicos”, indicou, para depois responder a uma outra pergunta do tribunal que não se lembrava de nenhum caso que os ADM mandaram publicar um concurso.
“Todos os pagamentos à reabilitação de casas, contratação de firmas de imobiliárias, reabilitação da Escola do partido Frelimo, tiveram por base o procurement?”, perguntou o juíz. “Não, dos casos que mencionou nenhum deles teve concurso público”, respondeu o réu.
Ainda sobre este financiamento, Máximo Dias, advogado do ex-ministro António Munguambe, questionou se Antenor Pereira sabia que não era permitido fazer pagamentos de obras estranhas aos ADM. Em resposta, o réu disse que “no âmbito da política de autonomia financeira, administrativa e patrimonial” podiam financiar.
Aliás, sempre que se questionavam certas acções como sejam aquisição e reabilitação de casas e financiamentos a terceiros, a autonomia financeira, administrativa e patrimonial de que gozam as empresas públicas (Lei nº 17/91, de 03 de Agosto) a partir do momento que deixaram de ser estatais, é sempre reclamada como justificação tanto por certos advogados como por alguns réus.
Por seu turno, o advogado de Cambaza, questionou se existia no regulamento interno dos ADM ou uma lei que impeça às empresas públicas financiar partidos políticos. Pereira respondeu negativamente, ao que Vasconcelos Porto ironizou que “o senhor, da mesma forma que financiou o partido Frelimo, pode construir uma escola para a Renamo?”. O réu respondeu que sim.
Os USD
Antenor Pereira foi o terceiro e último réu a ser ouvido nesta quarta-feira, depois de António Munguambe (ex-ministro dos Transportes e Comunicações) e António Bulande (antigo chefe do gabinete do ministro). A sua audição iniciou às 11:55 horas. A primeira pergunta do tribunal foi sobre os USD 25 mil transferidos da conta do réu para o co-réu António Munguambe. Antenor confirmou a transferência, explicando que ele conseguiu o valor através de um empréstimo que pediu à empresa ADM para ajudar o ex-ministro.
Disse ainda que o pedido de empréstimo foi dirigido à empresa, na pessoa do PCA Cambaza. Questionado se era normal fazer pedidos de empréstimos à direcção da empresa, posto que os ADM têm um fundo social para os trabalhadores, Pereira respondeu ao tribunal que “o estatuto da empresa permite-lhe gerir financeiramente como se de uma empresa privada se tratasse”.
O juiz lembrou ao réu que na contestação da acusação (apresentada pelo seu advogado, Abdul Gani, no segundo dia do julgamento) vem que houve coincidência de dois pedidos de USD 25 000 e uma parte teria sido, por engano, dirigido à conta de Munguambe. O réu reiterou que houve apenas um pedido de USD 25 000 e não dois, conforme avança a contestação de acusação do seu advogado. Ainda sobre o empréstimo, Pereira disse que já reembolsou os USD 25 000 aos ADM e que está preparado para provar em sede do tribunal.
Lembre-se que o despacho de pronúncia indica que o réu Antenor Pereira, ao solicitar em Dezembro de 2007 ao co-réu Cambaza, na qualidade de PCA, o valor de USD 25 mil alegadamente a título de empréstimo, visava contornar o impedimento legal quanto à obtenção de bolsas de estudo para os filhos do co-réu António Munguambe.
Sobre a reabilitação das residências dos administradores, o réu disse que “ficou decidido verbalmente entre os membros do CA dos ADM que quem excedesse o tecto fixado (USD 30 000) deveria reembolsar gradualmente a diferença”. E porque o tecto dos USD 30 000 foi largamente excedido, o juiz pediu ao réu que explicasse as modalidades de reembolsos. “Não houve fixação de modalidades de reembolsos porque foi uma decisão que saiu à medida que o trabalho (reabilitação das casas) ia correndo”, assim respondeu o réu.
Imóveis
Sobre o imóvel da Avenida Francisco Barreto, cidade de Maputo, alienado a favor de Cambaza, o ex-administrador financeiro explicou ao tribunal que inicialmente o imóvel foi adquirido em nome dos ADM “e todos os documentos que existem dão a indicação de o imóvel ser dos ADM”.
O réu explicou ainda que o imóvel passou para Cambaza depois deste ter manifestado interesse nesse sentido através de uma carta dirigida ao CA da empresa. Depois da insistência do tribunal, Pereira acabou revelando que a carta foi dirigida a si na qualidade de administrador financeiro. No despacho de pronúncia consta que a carta de Cambaza não tinha destinatário. O réu disse não saber do valor de um milhão de dólares que consta do despacho de pronúncia como preço do imóvel, tanto mais que “o valor que vem na escritura e nos movimentos de saídas de dinheiro é de USD
“Cambaza beneficiou do imóvel como compensação dos subsídios em atraso”, disse, acrescentando que o PCA não foi o único membro do CA beneficiário. Os subsídios em atraso, na explicação do réu, referem-se aos subsídios de representação e de “administração” de que os membros do CA não tinham direito e não auferiram na devida altura.
Quanto ao imóvel da Kim IL Sung no bairro da Sommerschild, o réu disse ao tribunal que o imóvel foi adquirido a favor dos ADM e não de Cambaza. Mais ainda, que o mesmo não estava enquadrado no âmbito do alargamento das regalias sociais. O tribunal interrogou ao réu por que o imóvel estava registado em nome de Cambaza e da sua esposa Graciete Matias Macuacua. “Não sei do registo”, respondeu. Sobre o preço, o réu disse na audição que o imóvel custou USD 850 mil pagos em duas prestações. “Por lapso da imobiliária (Imobiliária Algarve), no acto de escritura o imóvel foi registado por USD 425 mil, a última prestação paga”, disse, acrescentando que foi Cambaza que autorizou a imobiliária a corrigir o erro. Pelos serviços de intermediação prestados, consta que a Imobiliária Algarve recebeu USD 30 mil. O réu reiterou que “nunca foi intenção dos ADM passar o imóvel para Cambaza”, quando o tribunal pediu explicação do facto de a segunda SISA vir em nome de Cambaza.
Na manhã desta quinta-feira deverá ser ouvido o réu Diodino Cambaza, uma audição que se aguarda com muita expectativa, tendo em conta que é a principal peça de toda esta novela, que promete ainda muitos picantes episódios.
SAVANA – 20.11.2009