Espinhos da Micaia
Por Fernando Lima
Há um ministro do pós-independência que era conhecido entre os seus pares da região como o “big balls”. Podíamos traduzir à letra por grandes bolas, mas o que de facto quer dizer no vernacular de Camões e Bocage é um ministro de tomates.
Este servidor público de referência dá o nome a um viaduto de referência de não menos referenciáveis pôres do sol na capital, à beira do Índico plantada. Praticamente o mesmo tamanho de avenida que coube ao poeta mor.
O ministro, que militou na via e obras da mais notável das direcções públicas da colónia de Moçambique, falava curto de grosso. Quando se faziam discursos leninistas de “comboios da vitória” tira carril, mete carril subindo Muanza a caminho de Inhaminga, Alcântara ripostava seco: comboio da brincadeira. Quando outros exercitavam os vivas e abaixos, as batatas nos bíceps, o nosso homem fazia as contas às receitas dos portos e caminhos de ferro. E sobretudo quando fecharam as vias para a Rodésia, o homem tornou-se mais exigente obcecado com os números da África do Sul do apartheid.
O discurso oficial zurzia a África do Sul. Ao convite “que venham” Botha e os seus generais mandaram a força aérea e os esquadrões especiais contra as rectaguardas do ANC e a debilitada infra-estrutura moçambicana.
“Big Balls” liderava na SADC o sector de alternativa à hegemonia sul-africana. No argumento “apartheid” viu a oportunidade para a modernização de terminais, vias férreas, cais de acostagem e equipamentos portuários. Mas nunca deixou de manter a porta aberta do seu gabinete aos exportadores do rand que continuaram a utilizar o porto de Maputo como acesso natural ao mar.
Ao tempo, este vai e vem discreto de corredores, telexes e faxes ficou conhecido como “diplomacia ferroviária”.
Alcântara Santos, o homem que preferia as balalaicas claras ao fato e gravata, tinha gabinete junto ao porto e uma equipa de jovens engenheiros e economistas. Mais politizados mas atentos ao pragmatismo do mais velho.
23 anos depois, os ferroviários dão de novo mostras de lucidez onde os políticos preferem o discurso truculento da honra, da soberania. Da arrogância.
Moçambique e o Malawi parecem caminhar de costas voltadas. Apesar dos laços de consanguinidade, apesar da SADC, apesar das veias e pulmões feitos de portos de ferrovias que ligam os dois países.
Apesar das bravatas, há uma equipa mais ou menos anónima de homens e mulheres que mantêm veias e pulmões a funcionar, mesmo quando gestão se confunde com voluntarismo.
Quando o discurso da globalização esbate nacionalismos, é notável assinalar que os caminhos de ferro do Malawi são geridos por uma parceria público-privado inteiramente moçambicana. Os malawianos não têm acções, capital na sua própria ferrovia. O que não deixa de provocar protestos em surdina, recados irritados. Ameaças mesmo. Há 400 trabalhadores que fazem os caminhos de ferro do Malawi.
Os discípulos de Alcântara Santos fazem as pontes, passam mensagens. Perante a precaridade a a ameaça de borrasca, colocam cautelosamente em cima da mesa soluções de futuro.
Como aprenderam do mestre.
SAVANA – 18.12.2009