Não será uma metáfora crítica ao Poder actual?
Por Abdul Sulemane
O que falta em volta de Samora Machel é um debate contraditório, dialéctico, que se faça alimentar de hipóteses contraditórias entre si; que ousem pesar minuciosamente a sua acção política, avançar razões e objecções sobre a sua eventual grandeza política, a fim de se poder abstrair uma visão objectiva da sua verdadeira estrutura política.
E recorrendo unicamente à sua percepção do debate social e das suas percepções de Machel, Severino Ngoenha, no seu livro “Machel ícone da primeira República?”, faz propostas filosóficas de quem não pode pactuar com o silêncio e ainda menos aceitar que se confine a figura problemática de Machel ao extremo da canonização ou satanização ideológica.
Severino Ngoenha quando invoca Machel, é de Machel, da sua época, do seu Governo, do sistema de Governo, do sistema político, então vigente que se debruça, ou ele é um simples pretexto para criticar indirectamente o sistema, o regime político e os governantes actuais?
No prefácio, Elisa Santos interrogou-se pelo título escolhido, mas admitiu que “Machel fez-lhe crer que o sonho de construir um país que nos pertencia e que seria resultado do somatório do que todos fizéssemos”.
Segundo Maria Elisa, a figura de Samora estava tão ligada à nossa vida que muitos de nós pensávamos que não era possível substituí-lo. Para Elisa, a morte de Samora obrigou-nos a reflectir no que já não tínhamos, no que durante o seu tempo de vida e de presidência não tínhamos podido ter.
O livro de Severino Ngoenha faz-nos rever, reflectir, construir um pensamento crítico, perceber as dificuldades e sistematizar o que foi aquele tempo. O autor do livro mostra-nos que afinal Samora Machel apesar de ícone, era um ser humano. Como tal fez coisas boas e menos boas. Mas essencialmente ele amou o seu povo.
“Ele não desapareceu nas nossas vidas e continua a ser referência para muitos de nós. Os agradecimentos feitos no livro foram para os chapeiros, repistas e actores de teatro pelo facto de fazerem recordar que as academias nasceram do sentido comum e têm responsabilidade de restituir conceptualmente as preocupações populares”.
Confrontar ideais e orientações
Depois de anos de silêncio em volta de Samora Machel, o seu nome e figura, de repente, começou a ser suscitado nos chapas, no teatro, nos rapes como necessidade de confrontar a sua orientação do país com ideais passados, mas talvez não ultrapassados.
Como se pode justificar hoje a sacralização de um presidente socialista, comunista, marxista, monopartidarista e não democrático?
Depois da queda do Muro de Berlim, que completou 20 anos recentemente, as estátuas de Lenine em Moscovo, de Marx em Berlim, foram destruídas, destronadas, deslegitimadas, dessacralizadas. Castro, Che Guevara, Estaline são hoje figuras passadistas, ultrapassadas. No pensamento único da vitória do liberalismo, do modelo capitalista, o que significa celebrar Machel?
Mas a fulgurante reaparição de Machel tem outra explicação. Não será uma metáfora crítica ao poder actual?
Vozes discordantes
No Moçambique democrático de hoje, o que nos obriga a incomodar Samora Machel para manifestar o nosso desacordo da actual governação? Será a nossa democracia não suficientemente democrática para ouvir vozes discordantes?
Seremos cobardes ou não suficientemente corajosos para ousar frontalmente dizer a nossa parte da verdade? Ou então trata-se de uma figura de estilo, de retórica política?
Há mais de 20 anos, enterrámos Samora Machel. Mas quem é que morreu, quem enterrámos no dia 28 de Outubro de 1986, o homem Machel, o presidente ou o símbolo? Mas o que Machel simbolizava? O que Machel continua a simbolizar? O que os chefes dos chapas, os cantores de rap, procuram em Samora Machel?
Samora Machel mito negativo ou positivo
Segundo o autor, com a sua personalidade, com o seu carisma, com a sua personificação do poder, com o seu estilo de liderança, com os seus exageros, com os seus excessos, Machel marcou a história da primeira república moçambicana. Como, aliás, tinha já marcado o período precedente, guiando a Frelimo depois da morte de Mondlane, na luta de libertação nacional.
Na verdade, desde há vinte anos, as informações sócio-históricas sobre Machel são reserva de caças ciumentamente vigiadas por membros de uma oligarquia política, de jornalistas parciais e sobretudo estrangeiros, de críticos primários da sua obra. São especialistas orgânicos ou reaccionários que produzem as imagens iconográficas que nos são dadas em consumo, confrontando-se reciprocamente numa disputa de trincheiras ideológicas.
Morte de Samora
Disputas e posições nunca claras, manifestos, sempre veladas de coisas não ditas, impediram, até agora, que o grande público tivesse ideia clara, o que acaba muitas vezes por transformar a figura de Machel num mito positivo ou negativo.
O cume desta dialéctica foi a sua morte, ainda hoje rodeada de mistério entre os assassinos e cúmplices reais, possíveis e imaginários, que vão dos racistas do apartheid, até aos russos traídos, passando pela cumplicidade interna.
Mas o mais interessante é que Machel foi enterrado como Faraó, isto é, com todos os seus haveres: ideologia política, concepção de valores que vão da ideia da justiça, do patriotismo, do papel do Estado e do partido.
Severino Ngoenha no seu livro escreveu coisas difíceis numa linguagem acessível e compreensível.
SAVANA – 18.12.2009