Texto: Carla Lopes Coelho
A um homem de vinte e pouco anos é atribuída a missão de liderar um grupo de tropas da República Portuguesa na Guiné, durante a guerra colonial. Em pleno mato, «a realidade batia forte contra o rosto» de todos quantos ali viveram. Um tempo e um espaço onde «viver era uma longa espera do incerto». A acção deste romance histórico, contado na primeira pessoa, passa-se entre o Rio Cacine e a fronteira francesa. Chega-nos através das memórias de um «homem grande», designação atribuída pelos autóctones aos homens detentores de sabedoria. Um homem em paz consigo mesmo e com a História que fez acontecer. Estamos a falar de «Memórias dos Dias sem Fim», de Luís Rosa, editado pela Presença.
A chegada ao Cais do Pidjiguiti, lá por volta do final da década de 50, é o ponto de partida para uma aventura de provação, humildade e luta pela sobrevivência física, mental e ideológica de um jovem idealista português, o qual cedo se apercebe que «bem dura é a prova de se ser homem, pesquisador de sentido, encurralado na limitação do seu pensar e na duração dos seus dias!»
No terreno encontra uma sociedade guineense plena de tradições, crenças, costumes, rituais e superstições, assentes na religião e cristalizados pelo tempo, a que a muito custo a racionalidade acicatada dos líderes locais permite introduzir alterações de procedimentos, ainda que por motivos maiores de saúde, nos vários aspectos da vida das comunidades: «É longo o caminho de mudar os hábitos sacralizados. Era assim no nascer, no morrer e no despertar para a vida do adulto.»
A verdade, porém, inclui o fascínio que o protagonista vai descobrindo pela simplicidade de novos princípios e valores, ainda que uma educação conservadora não lhe permita esconder o peso de algum constrangimento quando se recorda que «os dias sem fim no rude caminho da sobrevivência penduravam-nos na mente uma interrogação amarga que nos fazia abanar as crenças e repensar os princípios».
Para além da missão militar que lhe havia sido atribuída, o protagonista depara-se com a responsabilidade de gerir os conflitos locais e receber os refugiados, os quais «traziam, sobretudo, uma infinita esperança de encontrar a paz, e a alma suplicando num rosto sofredor, expressivamente confiante que lhes deixássemos ali parar o deambular do desespero».
O confronto com as necessidades básicas de uma África exuberante, a escassez de comida e água das estações mais severas e inóspitas, permitiam aos homens solidificar os laços de partilha, dedicação, confiança, entrega e amizade e criar pontes de solidariedade com os outros homens: «o pão da tropa era o pão de todos.»
E é dessa realidade que a dor assola mais alto, quando alguns «da tribo» partem inesperadamente, sem darem conta que o tempo para eles terminou, durante uma qualquer missão que lhe coloca em perigo a integridade física e, não poucas vezes, a própria vida. Quem fica sente a realidade bater-lhe «forte contra a rosto, olhando o companheiro morto», enquanto a memória tenta registar com doçura e crueza o momento: «o tempo saltara para o outro lado do desconhecido. O que restava do homem já não era ele.»
Um conflito armado vivido numa dimensão urbana diferente, onde «à distância o homem perde a noção do homem e reforça a coisificação de tudo». Por contraste com a perspectiva de quem há muito vive no mato, onde até as fronteiras são, «primeiro que tudo, fronteiras da alma. Depois tornam-se fronteiras de pessoas, fronteiras de raças, fronteiras de países. Fronteiras de absurdo».
A guerra colonial de África vista por quem a viveu em cada poro do sentir e a impregnou na memória. Uma reflexão de quem está em paz, após voltar ao «local dos momentos marcantes. Para ver se ainda ali está o outro que fomos, e se corresponde à utopia das lembranças».
Um romance que concorre para nos apaziguarmos com a nossa própria História. «Entendemo-nos, apenas, no dia em que cada um relativiza a sua verdade».
DIÁRIO DIGITAL – 12.01.2010