• Pontos comuns
Por João Costa*
Decorreram de 16 de Novembro a 22 de Dezembro de 2009, nas instalações da Escola Secundária Francisco Manyanga, em Maputo, as audiências de discussão e julgamento do mediático “caso aeroportos de Moçambique”.
Trata-se de um processo instaurado pelo Ministério Público, na sequência de denúncias feitas pelos trabalhadores dos ADM, onde se destaca o Sr. Hermenegildo Mavale, que exercia as funções de Administrador Financeiro daquela empresa pública. Nessa denúncia, apontava-se o ex-PCA, Diodino Cambaza, como quem se apoderava ilicitamente, para benefício próprio, dos bens da empresa. Para além de Cambaza, são também arguidos neste processo, o antigo Ministro dos Transportes e Comunicações, António Munguambe, o antigo chefe do Gabinete de Munguambe, António Bulande, Antenor Pereira, ex-administrador financeiro dos ADM ( Aeroportos de Moçambique), Maria Deolinda Matos, Administradora delegada da SMS.
Há, indubitavelmente, no “caso aeroportos de Moçambique” aspectos jurídico-criminais extremamente importantes e que podem influir na decisão da causa. Em boa verdade, tais aspectos gravitam essencialmente em torno dum princípio incontornável em Direito Penal, o princípio da LEGALIDADE, previsto no artigo 5.º do Código Penal. Ou seja, “nenhum facto, ou consista em acção ou em omissão, pode julgar-se criminoso, sem que uma lei anterior o qualifique como tal.” E, por se tratar de um princípio fundamental num Estado de Direito, a Constituição consagra-o como garantia individual. E fá-lo nos termos seguintes “ Ninguém pode ser condenado por acto não qualificado como crime no momento da sua prática.” (n.º 1 do artigo 60). Este direito deve ser garantido pelo Estado, nos termos do artigo 56.º da Constituição. Com efeito, os aplicadores da lei penal não tem possibilidade de optar entre respeitar ou não respeitar este princípio. Devem simplesmente respeitá-lo!.
O princípio atrás citado leva-nos a questionarmos se o desvio de bens das empresas públicas constitui crime, à luz do quadro legal vigente? É esta a questão central, antes de qualquer espécie de exercício.
E a questão acima colocada remete-nos imediatamente para uma análise da aplicabilidade da Lei 1/79 de 11 de Janeiro ( Lei à luz da qual o Ministério Público deduziu a sua acusação contra os réus do “caso aeroportos”), aos funcionários de empresas públicas e no caso concreto aos seus administradores, incluindo o PCA.
A Lei 1/79 de 11 de Janeiro, lei à luz da qual o Ministério Público deduziu a sua acusação contra os arguidos acima referidos, estabelece no seu preâmbulo o seguinte e passamos a citar: “ Os bens do Partido, do Estado e das Organizações Democráticas de Massas, num Estado de democracia popular rumo ao socialismo, são pertença de todo o povo. Todo o povo deve protegê-los, velar pela sua utilização. A lei actual protege os bens e dinheiros do Estado de forma especial através do agravamento das penas aplicáveis aos funcionários que abusem ou que, de qualquer modo, atentem contra esse património”. E o artigo 1.º da mesma Lei, estabelece que “Os funcionários do Partido e dos Organismos deste dependentes, do Estado, das Organizações Democráticas de Massas, das empresas estatais e intervencionadas pelo Estado e das cooperativas que, em razão das suas funções, tiverem em seu poder ou à sua guarda, dinheiro, cheques, títulos de crédito, e coisas móveis, pertença das organizações a que estão afectos ou de particulares, e os desviarem do destino legal ou dissiparem em proveito próprio ou alheio em prejuízo dessas organizações e dos particulares, ou os furtarem, serão condenados:” ( o destaque é nosso).
Facilmente se constata que a Lei 1/79, de 11 de Janeiro, (bem como as alterações por ela sofridas) à luz da qual o Ministério Publico deduziu a sua acusação não prevê a punição dos funcionários das empresas públicas que, eventualmente, tenham desviado bens. Pune exclusivamente os funcionários do Partido, dos organismos deste dependentes, do Estado, das Organizações Democráticas de Massas, das empresas estatais e intervencionadas pelo Estado. ( art. 1.º, lei 1/79, de 11 de Janeiro).
Ora, no caso Manhenje o Acórdão do Tribunal Supremo considera serem elementos constitutivos deste crime, vulgarmente conhecido por crime de desvio de fundos, a qualidade do autor, ou seja, no caso Manhenje, a qualidade de funcionário do Estado.
Ora, Cambaza não é nem funcionário do Estado, nem funcionário do Partido, nem funcionário de uma Organização Democrática de Massas nem funcionário de empresa estatal nem funcionário de empresa intervencionada pelo Estado.
Cambaza é funcionário de uma empresa publica, qualidade essa, que a seguir-se a jurisprudência adoptada pelo Tribunal Supremo no caso Manhenje, não permitirá a Dimas Marrôa condená-lo pelo crime de desvio de fundos.
Não temos, portanto, no nosso ordenamento jurídico, uma lei que sancione criminalmente, os funcionários das empresas públicas por desvio de bens destas. E porque estamos no âmbito do Direito Criminal, onde a garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos se mostra mais premente, a lei veda o recurso à interpretação extensiva, ou seja, para sermos mais concretos, não se permite o alargamento do âmbito de aplicação da Lei n.º 1/79, 11 de Janeiro, aos funcionários das empresas públicas porque estes não são abrangidos no seu âmbito de aplicação, o qual, como claramente afloramos acima, é aplicável aos funcionários das empresas estatais, ou aos funcionários de empresas intervencionadas, mas que não se confundem com os funcionários das empresas públicas. Daqui resultam importantes conclusões. É que qualquer tentativa de imputação de responsabilidade penal aos funcionários das empresas públicas, com referência à Lei n.º 1/79 de 11 de Janeiro, constituirá uma violação
inaceitável dos princípios basilares do Direito Penal, mormente o princípio da LEGALIDADE, consagrado no já referido artigo 5.º do Código Penal, ou seja, “nenhum facto, ou consista em acção ou em omissão, pode julgar-se criminoso, sem que uma lei anterior o qualifique como tal.” E no n.º 1 do artigo 60 da Constituição da República.
Só é crime aquilo que a Lei Penal considera como tal. Não há crime sem lei, “nullum crimen sine lege” e não há pena sem Lei, “nullo poena sine lege”
Não acreditamos por isso que o Juiz da causa, o Dr. Dimas Marôa, deixe de tomar em consideração este princípio fundamental, criando grave precedente no ordenamento jurídico moçambicano pois poria em causa as garantias quer constitucionais quer legais dos arguidos e todos valores supremos estruturantes de qualquer Estado de Direito.
*Jurista
SAVANA – 26.02.2010