A talhe de foice
Por Machado da Graça
Para todos aqueles que pensam que as manifestações de protesto contra as eleições de Outubro passado estão a perder, a cada dia que passa, mais razão de ser, Afonso Dhlakama deu uma resposta concreta em entrevista ao Canal de Moçambique: As manifestações serão ainda este ano.
O que já é um consolo. Poderia ter sido um pouco mais vago e dito que seriam ainda este século ou, bastante mais vago, dizendo que seriam ainda no presente milénio.
Mas não. Ficámos a saber que se não forem em Fevereiro poderão ser em Março, ou em Abril, ou em Maio e, por aí adiante, até Dezembro. E daí não passam.
Mas porquê a demora? Ele explica: Trata-se de uma guerra muito importante, porque as manifestações não podem falhar. Por que é que queremos fazer as manifestações? Não é para fazer recuar o regime da Frelimo? (...) No dia em que iniciarem, a Frelimo tem que vir a correr, para negociar, à semelhança daquilo que aconteceu em Roma.
Interrogado sobre o que acontecerá se a Frelimo não ceder, Dhlakama disse de sua justiça: Vai desaparecer a paz. A democracia vai desaparecer. Afinal, meu irmão, sabe quando é que as guerras são feitas no mundo? É por causa disso.
(...) Se a Frelimo não ceder, não sei dizer o que vai acontecer. Se haverá guerra, como aquela dos 16 anos, ou haverá qualquer outra coisa que não posso prever agora.
Sobre a forma como as manifestações se irão desenrolar Afonso Dhlakama foi também explícito: O que é que queremos atingir? Não queremos matar os polícias, os FADM... não queremos matar pessoas da Frelimo, mas se eles vierem e dispararem, como eles dizem que vão disparar, nós também vamos responder duramente, com paus, enxadas, armas, porque ninguém há-de ficar sentado e levar porrada, ser morto.
Embora tudo isto esteja entremeado de outras frases de apelo aos militantes da Renamo para não se vingarem violentamente da fraude eleitoral, as citações que aqui publico são, para dizer o mínimo, preocupantes.
Ou seriam se eu ainda acreditasse que Afonso Dhlakama continua a ser o líder incontestado do segundo maior partido do nosso país. E cada vez acredito menos nisso. Principalmente pelos exemplos recentes daquilo a que Dhlakama chama a democracia interna da Renamo.
Falando sobre a tomada de posse nas várias assembleias dos deputados do seu partido, contrariando as suas ordens expressas, Dhlakama teceu as seguintes reflexões: De facto não resta dúvida que a nossa democracia interna, na Renamo, é uma democracia excessiva, que ultrapassa até os limites. (...) Mas quero dizer que isto é consequência da democracia multipartidária que reina na Renamo, que até pode ser interpretada como uma anarquia, o que não é, porque numa democracia de facto as pessoas têm liberdade de se expressar e chegam a ultrapassar os limites.
Aqui, o pensamento político do dirigente da Renamo trouxe-nos alguns conceitos novos a que devemos prestar atenção. Um deles é o de democracia multipartidária dentro de um partido. Fico na dúvida sobre se este conceito nos quer dizer que, dentro da Renamo, existem vários partidos e todos eles gozam dos direitos inerentes à democracia multipartidária.
Diz ele que a tal democracia pode até ser interpretada como uma anarquia. Será que a ideologia política da Renamo, que eu sempre enquadrei no campo conservador da democracia cristã, agora evoluiu para a extrema esquerda, que Afonso Dhlakama se transformou num libertário, vai substituir a bandeira da perdiz pela completamente negra dos anarquistas e passar a lutar por um sistema político em que seja abolido o governo e todas as estruturas impostas?
Talvez não seja isso. Talvez ele não tenha querido usar o termo anarquia em sentido político mas (erradamente) como sinónimo de confusão. E daí ele ter falado de que a tal democracia no seu partido chega a ultrapassar os limites. Quais limites ele não explica e cabe-nos a nós tentarmos avaliar.
No meio disto tudo fico com a sensação que Afonso Dhlakama continua a ter demasiada confiança em si próprio e não se prepara para falar nas entrevistas que dá.
O resultado é que diz coisas que, se calhar, não pensa e de que, se calhar, depois se arrepende. Mas o facto é que elas estão ditas e impressas nas páginas dos jornais e gravadas no equipamento de som e vídeo e, a partir daí, são muito difíceis de negar.
O que causa perturbação não só dentro do seu partido como na sociedade moçambicana em geral.
Pode-se dizer que ele não foi apoiado pelos seus quadros e conselheiros.
Mas a verdade é que ele está em Nampula, numa casa cercada por polícias, e os seus quadros e conselheiros, todos, estão em Maputo, sentados na Assembleia da República.
O que é uma situação perfeitamente bizarra, temos que concordar.
SAVANA – 19.02.2010