A talhe de foice, por Machado da Graça
Por estes dias os sul-africanos e todos nós estamos a comemorar a libertação de Nelson Mandela, faz agora 20 anos.
Momento inesquecível aquele em que o velho combatente voltou a poder circular em liberdade pelas ruas de todo o mundo.
Mas se a libertação de Mandela foi tudo isso, ela foi, principalmente, simbólica das mudanças, extremamente importantes, que foram anunciadas na mesma altura da libertação.
Estou a falar, concretamente, da legalização do ANC, do PAC e do Inkata.
Porque a legalização destes 3 partidos tinha um significado muito claro: o fim do regime do apartheid.
Ninguém teve a menor dúvida que, nas primeiras eleições que fossem realizadas após a legalização, a vitória seria, por larga margem, do ANC.
Tudo isto era resultado das longas e difíceis negociações que se vinham a realizar entre Nelson Mandela e o Presidente Frederick de Klerk. Situação bizarra aquela em que um chefe de estado manteve meses de negociações com um dos presos das suas cadeias, para fazerem uma revolução pacífica no país.
Situação em que a estranheza se mistura com uma enorme coragem e visão por parte de um de Klek, eleito pelos sul-africanos brancos para continuar a manter o seu poder político e económico, que negoceia até ao ponto de ceder, conscientemente, o poder político à maioria negra.
Dir-se-á que a minoria branca continuou a manter o poderio económico que antes tinha. E é verdade. Mas a destruição desse poderio económico só seria possível através de uma revolução violenta, fazendo correr rios de sangue. E isso nenhuma das duas partes queria. Os dois negociadores estavam conscientes de que isso poderia destruir completamente a África do Sul. Reduzir o país a escombros obrigando a recomeçar tudo de novo.
A manutenção do poderio económico nas mãos da minoria branca e a alteração dessa situação calma e paulatinamente, foi a solução encontrada.
E não foi uma solução que tenha agradado a toda a gente. Assim como de Klerk foi considerado traidor por muitos dos brancos que o elegeram, também Mandela teve que enfrentar a incompreensão de muitos dos negros que esperavam que a mudança política significasse, imediatamente, uma melhoria significativa das suas condições de vida.
A entrega aos dois do Prémio Nobel da Paz foi das decisões mais correctas e históricas a que aquele prémio já assistiu desde que foi criado.
Hoje diz-se que a política do “black empowerment”, que deveria dar acesso ao controlo da economia pela maioria negra não está a funcionar como previsto. E a razão que se aponta é o facto de essa política estar a ser exercida exclusivamente em benefício dos dirigentes do ANC. O que está a provocar gente muito rica, mas pouca gente. Está-se a criar uma grande burguesia negra, numericamente pequena, sem se ter criado uma média burguesia, numerosa.
A esmagadora maioria dos negros sul-africanos continua na linha da pobreza.
Nada a que não estejamos a assistir também por cá.
Mas, voltando à libertação de Mandela e às mudanças políticas na África do Sul, a legalização do ANC e a consequente passagem do poder político para as suas mãos, teve também efeitos importantes fora das fronteiras sul-africanas.
Nomeadamente significou o fim do apoio da máquina militar sul-africana à Renamo e a outros grupos militares que actuavam em diferentes países da região. Foi, portanto, uma importante alavanca para a paz na África Austral.
Levou mesmo a que as forças armadas desmantelassem as cinco ou seis bombas atómicas que já possuíam, fabricadas com o apoio de Israel,antes que elas passassem para o controlo de um governo de maioria. O que, apesar de as intenções serem más, acabou por ser uma coisa boa para todos nós. Passamos bem sem armas nucleares aqui por perto.
A eleição de Nelson Mandela para Presidente da República foi apenas a continuação da luta política e diplomática que ele e de Klerk vinham travando desde antes da sua libertação. Fazer da África do Sul o “país do arco-íris”, partindo daquilo que ele era no fim do apartheid, era uma tarefa gigantesca. As barreiras físicas e mentais a ultrapassar eram gigantescas. Mas Mandela deu os primeiros passos. Coisas que pareciam pequeninas mas eram enormes: visitar a viúva de Vervoerd, vitoriar a selecção nacional (integralmente branca) de rugby do seu país, envergando a sua camisola.
Ainda há poucos dias convidou para almoçar em sua casa um dos guardas da prisão em que esteve encarcerado.
Por tudo isto, eu creio que se pode afirmar que a libertação de Mandela e a legalização dos partidos representativos da maioria corresponderam, de alguma maneira, ao nosso 7 de Setembro.
A data da Vitória.
SAVANA – 12.02.2010