Uma troca de comentários a um post no ma-shamba levou-me hoje a recordações absolutamente inesperadas. Nasci e passei a infância em Lourenço Marques e os amigos, inseparáveis e praticamente únicos dos meus pais, eram Karel Pott e a mulher. Fui criada praticamente como irmã dos filhos deles.
De pai holandês e mãe negra, terá sido o primeiro mulato moçambicano a obter um diploma de curso superior. Era advogado, com escritório num belíssimo prédio na Baixa de Maputo - o Prédio Pott -, hoje em ruínas e ocupado por marginais, objecto de justas exigências para que seja recuperado. A tal ponto desfigurado que nem o reconheci quando voltei a Maputo, e o procurei em vão, há cerca de oito anos.
Com orgulho póstumo, descobri hoje que Karel Pott teve um conjunto de interesses e actividades que eu ignorava totalmente, por exemplo que foi um dos fundadores do jornal O Brado Africano e que, como presidente do Grémio Africano, protestou nos anos 30 porque, e passo a citar: «fechavam-se as escolas e dificultava-se o ingresso de alunos negros e mulatos nas existentes, jogando-os, se homens, na marginalidade, e, se mulheres, no "monturo ignóbil da prostituição". Falando com a experiência de quem havia representado – como atleta de corrida – Portugal nas Olimpíadas de Paris, em 1924, lamentava que em Lourenço Marques, "terra mais de pretos portugueses que de brancos portugueses", fechava-se a porta aos primeiros…».
Para a criança de menos de dez anos que era quando sai de Loureço Marques, ele foi apenas o padrinho extremamente carinhoso que vivia numa modesta moradia no Palmar, separada do areal por uma mísera estrada e umas urzes, onde eu passava quase sempre os fins-de-semana. Por vezes vinha visitá-lo a mãe que se recusava a dormir noutro sítio que não fosse uma simples esteira estendida no chão. Recordo-me também de os meus pais me explicarem que eles não iam connosco em férias à África do Sul porque o meu padrinho não seria bem tratado por ser mulato – é a minha primeira recordação de um pré-apartheid, que nunca esqueci porque me causou na altura a maior das perplexidades.
E, com tudo isto, julgo que percebi esta tarde mais claramente porque me irritei tanto com sofridíssimas narrativas que tanto sucesso tiveram recentemente aqui pelo hemisfério Norte. A teclar num computador e sem precisar de um divã.
P.S. -Na foto (tirada «a caminho da Namaacha», como está indicado no verso), sobretudo para leitores de Moçambique: Karel Pott está ao meio comigo ao colo, a outra criança é a filha, Suzy Pott. A mulher, Elvira, está em primeiro plano, à esquerda.
In http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2010/02/o-meu-padrinho-mulato.html