Depois de três meses a falarem para o boneco, doadores e governo terminaram em bem o diferendo que os separava. Acaba, assim, a incerteza dos mercados, a assustadora especulação do rande e do dólar e, sobretudo, a inquietação geral de que o país saísse dos carris se os parceiros não desembolsassem os 472 milhões USD com que apoiam o Orçamento do Estado.
Este final feliz acaba as incertezas, é certo, mas deixa profundas cicatrizes pela forma como se processou este dossier todo. No rescaldo desta crise, ficou a preocupante sensação de que o nosso Governo “não é soberano, “não manda”, como lhe delegaram os que nele votaram. Pelo contrário, recebe mandato do povo, mas faz a agenda dos parceiros internacionais e a estes presta contas, antes de qualquer coisa mais. E neste qualquer coisa se incluem os cidadãos deste país e o parlamento.
Como, então, persuadir o cidadão a votar num programa de governação e a nele se rever e acreditar se, uma vez este programa aprovado, pode mudar consoante os desígnios de quem o vai financiar?
Ao escrever cartas, primeiro ao FMI, em Novembro de 2009, e depois aos G19, em dose dupla, em Dezembro e em Fevereiro, antes mesmo de uma comunicação oficial interna ao parlamento, prometendo àqueles que, em 2010, ia cortar subsídio às gasolineiras, que ia rever as leis anti-corrupção e das empresas públicas, que ia melhorar a lei do procurement, o Governo determinou, à partida, subrepticiamente, a sua lógica de prioridade na prestação de contas. Primeiro, os doadores e depois o parlamento e, por conseguinte, os seus cidadãos.
Mesmo que, como sucedeu, no dia do desenlace da crise, o ministro Aiuba Cuereneia tenha insistido que o Governo não cedera às exigências dos doadores, o simples facto de as principais exigências dos doadores se materializarem, concomitantemente, no seguimento da crise, faz-nos pensar numa coincidência estranha. Vejamos as coincidências: os doadores exigem revisão do regimento da Assembleia da República, claramente para acomodar o MDM a formar bancada. O Governo diz que esta não era matéria da sua alçada, mas apenas do parlamento. Coincidentemente, no discurso de abertura da primeira sessão, a chefe da bancada da Frelimo propõe a revisão do regimento e estende a mão ao MDM para constituir bancada. Os doadores exigem revisão da legislação eleitoral e, na mesma semana em que governo e G19 encerram a crise, o parlamento coloca na sua agenda da primeira sessão a revisão da lei eleitoral. Os doadores exigem clareza na estratégia anti-corrupção do governo.
Na mesma semana, o Ministério da Justiça lança o debate público para a revisão da lei de declaração de bens dos governantes.
Como se vê, são demasiadas coincidências para acreditarmos que não há, aqui, nenhuma relação de causa-efeito, entre as exigências dos doadores e a consumação imediata destas exigências. É a velha estória da mulher do César: não basta ser, também tem que parecer. E, neste dossier, não há nada que pareça que o Governo não fez a vontade dos doadores.
Analisemos, por exemplo, a urgência da revisão da legislação eleitoral. É certo que quase todos os observadores eleitorais criticaram a nossa legislação eleitoral, idem o Conselho Constitucional e o Presidente da República, pelo que havia consenso de que devia ser, inevitavelmente, alterada. Mas as próximas eleições só serão em 2013 (autárquicas) e 2014 (gerais). Até lá, há três anos e muitas sessões do parlamento pela frente. No entanto, escolheu-se precisamente a sessão de abertura da legislatura, aquela que já tem uma agenda cheia, com as muitas matérias que transitam da legislatura anterior e os incontonáveis programa quinquenal do Governo, Plano Económico e Social para 2010 e ainda o respectivo Orçamento do Estado.
Ou seja, não havia propriamente urgência para que a revisão acontecesse necessariamente nesta primeira sessão. Mesmo que viesse a acontecer no próximo ano, ou em 2012, ainda se ia a tempo.
Logo, é difícil convencer alguém de que não foi por imposição dos doadores que avançou no imediato. Os doadores queriam, de preferência, na primeira sessão do parlamento. A Frelimo (a do Governo ou a do parlamento, é sempre a mesma) fez-lhes a vontade.
Mas poderia o governo agir de maneira diferente, neste caso, perante a gritante situação de dependência exterior do nosso orçamento?
Seria sensato o Governo ignorar as exigências dos doadores, “mandá-los passear” e ficar a apregoar intransigentemente o secular conceito de Jean Jacques Rousseau de que a soberania é inalienável, indivisível e independente na ordem internacional, com pessoas em dificuldades, funcionários públicos com salários em atraso, como na Guiné-Bissau, e crianças sem ir à escola por falta de professores?
Mais importante ainda: é legítimo, ou não, quando os doadores nos dão dinheiro e, em contrapartida, nos exigem que façamos a sua agenda? É evidente que é legítimo. Quem paga a factura, determina a música que se toca. Chocante, não é, dito deste modo? Sim, mas é a cruel realidade. O problema é o precedente que esta crispação abriu. Toda a gente já viu que a melhor forma de impor um determinado ponto de vista, neste país, não é via Assembleia da República, ou qualquer outro órgão de soberania. Basta convencer os doadores, que passa!
Mais complicado ainda é explicar aos cidadãos deste país que o slogan de que a democracia é o poder do povo não quer dizer exactamente o que eles pensam. Os paradigmas de soberania de Bodin e Rousseau mudaram radicalmente. Agora, o poder de julgar sem ser julgado – que integra o poder soberano no sentido de Aristóteles e de Bodin – vem diminuindo consideravelmente e a sua preservação depende da afirmação económica internacional. Que, neste momento, Moçambique não tem..
O PAÍS – 30.03.2010
(Retirado de http://comunidademocambicana.blogspot.com/ )