Certo dia, em meados dos anos de 1950, eu estava no Núcleo de Arte com um dos alunos e Pancho Guedes entrou. Não estava à espera de tal audiência, pois dava ainda os meus primeiros passos na pintura. Pancho fazia-se acompanhar de sua mulher, Dorothy, e de Frank McEwan. Falavam em inglês entre eles e começaram a olhar atentamente para as minhas telas naives.
Pancho apresentou-se e perguntou-me se eu estaria interessado em vender-lhe um quadro por mês.
Não percebi porque queria que o fizesse, mas a verdade é que comecei a levar os meus quadros ao número 915 da Rua de Nevala, onde ele vivia e tinha instalado o seu estúdio.
Eu trabalhava ainda no Clube de Lourenço Marques quando, um dia, Júlio Navarro me disse que o arquitecto Alpoim Miranda Guedes queria que eu saísse do Clube e que fosse viver para sua casa. Fiquei fascinado, mas ao mesmo tempo com medo. Nunca tinha vivido na casa de um homem branco. Não aceitei o convite à partida e pedi-lhe que me desse algum tempo para pensar. Estávamos em 1959, eu já era casado na altura e queria discutir o assunto com os meus pais e a mulher.
Eles viviam em Mapuleni, muito perto de Matalana. Ficaram muito contentes, mas com algumas dúvidas e pediram-me que trouxesse esse homem a Matalana para lhes explicar exactamente o que queria de mim.
A minha mulher também estava curiosa e com vontade de conhecer esta família que me queria a viver em sua casa. O meu pai era um grande cozinheiro e preparou a refeição com a minha mãe e com a sua outra mulher. O meu tio animou a noite com danças e com a música da sua concertina, o que agradou à família Guedes.
Em Janeiro de 1960 cheguei então à casa dos Guedes, depois de me ter despedido das pessoas do Clube de Lourenço Marques. Pancho fez-me uma visita guiada pela casa e pela garagem onde eu iria pintar. Mas disse-me pouco depois: “volta para onde vives e passa trinta dias longe da tua família”.
Foi então que parti numa viagem ao interior. Ele queria que eu absorvesse todo o cenário, as expressões, as imagens que ia vendo, ouvindo e sentindo, e que revivesse o meu passado e presente.
Queria que eu pesquisasse os meus antepassados em busca do desconhecido – aquilo que eu já conhecia, embora sem o saber. As histórias que tanto os novos como os velhos me vieram a contar fizeram-me descobrir uma mina cultural e espiritual. Pancho esculpiu e poliu a minha alma, estudou-me antropologicamente, fez-me escavar as minhas origens e revelar as suas mitologias.
Quando regressei da minha sessão, Pancho fez-me perguntas e ajudou-me a dar-lhes respostas. Eram coisas que eu não fazia ideia que sabia. Comecei a acompanhá-lo nas suas construções e fui descobrindo a sua espantosa criatividade. Aquilo que ele exigia dos construtores não era mais do que aquilo que exigia de si próprio.
Muitas vezes assisti ao cruzar das linhas sobre o papel. Depois de assentes no chão e no espaço, transformavam-se em edifícios maravilhosamente esculturais, no seu estilo único e irrepreensível. Nenhum arquitecto em Moçambique tinha conseguido ligar a arquitectura à cultura nativa. Só nos seus projectos encontramos uma geometria que reflecte os padrões quase-tatuagens tão características da mitologia africana.
Pancho tinha um estúdio onde desenhava e outro onde dirigia o trabalho dos seus construtores e engenheiros. Ele sabe (e quem melhor do que eu para afirmar) como transmitir os seus pensamentos aos outros. É graças a ele que hoje consigo inspirar-me no estudo do Homem e da sua Cultura. Ele é capaz de lançar uma discussão sem a concluir, deixando aos outros esse papel. Essa bondade é contagiante, de tal forma que se enraíza nas nossas mentes, perfumando-as. Pancho conseguiu entrar na minha mente, iluminando-a e provocando-a.
A sua casa, no numero 915, foi como uma escola, não só pelas actividades que lá se realizaram, mas também pelas pessoas que por lá passaram. Isto só acontecia porque Pancho é como uma colmeia, uma fonte interminável de doçura. Nesta casa tive a oportunidade de me cruzar com pessoas como o músico Hendrik Be Blij, o poeta surrealista Tristan Tzara, o arquitecto sul-africano Julian Beinhart, o poeta sulafricano Breyten Breytenbach, ou o antropólogo alemão Ulli Beier, entre outros.
Um dos acontecimentos mais importantes para mim foi quando me apresentou a Eduardo Chivambo Mondlane e à sua mulher, Janet Mondlane. Essa noite transformou-me, graças a Pancho Guedes. Eduardo Mondlane falou sobre o meu trabalho e fez-me ver aspectos sobre os quais eu ainda não tinha pensado. A longa discussão entre Mondlane e Pancho acerca de Moçambique aconteceu entre os meus humildes quadros expostos pela sala. Infelizmente, a partida antecipada de Mondlane e de sua família para os Estados Unidos impediu-o de inaugurar a minha exposição, a 10 de Abril de 1961. Foi a minha primeira exposição, onde exibi cinquenta e sete quadros a óleo.
Foi o arquitecto Miranda Guedes quem me ajudou a montar a exposição, com o apoio do Núcleo de Arte.
Mais tarde, Pancho levou parte das obras para a Cidade do Cabo, para uma exposição intitulada Imagination 61. Conseguiu também que as minhas obras fossem expostas no Camden Arts Club, em Londres, no Musée de l’Homme, em Paris, no Mbari Club, na Nigéria e nos Estados Unidos. Os meus primeiros poemas foram publicados, também por iniciativa sua, na revista nigeriana Black Orpheus.
É também importante dizer que nas viagens que fez, durante o tempo em que eu estive em sua casa, Pancho foi percebendo que o meu nome era reconhecido onde quer que fosse. Por exemplo, quando fui a Lagos pela primeira vez e aí me encontrei com artistas locais, fiquei surpreendido com o modo como me receberam. Woye Soyinka recebeu-me calorosamente e levou-me até à sua Universidade e ao Mbari Mbayo Club, o centro intelectual nigeriano por excelência. Pancho tem esta capacidade de criar uma corrente, conectando toda a gente que conhece. Pancho é como um médium, embora não lance búzios… A sua argúcia permite-lhe descobrir talentos e promover a criatividade. Para ele uma flor murcha ainda tem vida – só ele consegue dar à planta humana aquele húmus que lhe dá a força e a vitalidade que mais tarde nos fascina. Ele consegue sempre fazer com que aqueles com quem convive sejam bem sucedidos e se tornem auto-suficientes para o futuro.
Ele sempre ajudou na construção de edifícios para instituições, escolas ou infantários – sempre com o olhar no futuro. Recordo-me perfeitamente do apoio que deu à Missão Suiça na então Lourenço Marques, em Chicumbane, Xai-Xai, em Antioca, Magude, em Ricatlha, em Marracuene e também a ajuda que deu às Irmãs da Caridade em inúmeros projectos de apoio social.
Era-lhe especialmente doloroso assistir ao contraste entre a Cidade do Caniço, delapidada e tão parca em higiene e nos suportes mais básicos, e a Cidade de Cimento, que ficam lado a lado. Nos anos de 1960 escreveu um longo artigo sobre esta questão, com o objectivo de chamar a atenção do governo colonial para este problema, mas foi criticado após a sua publicação – até o município se opôs. Mas Pancho não se importou. Queria encontrar uma solução que trouxesse pelo menos algum alívio, por pouco que fosse, a estas pessoas que viviam numa pobreza tão acentuada. A burguesia portuguesa estava ao lado da opinião oficial e também não concordava com ele, mas as populações das áreas mais afectadas adoravam Pancho e ainda hoje o exaltam.
Sem a mão enfeitiçada do arquitecto Pancho Guedes nunca teria sido iluminado nestes caminhos incertos da vida.
* texto preparado a propósito da primeira exposição de Pancho Guedes em Moçambique, país onde concebeu alguns dos mais arrojados edifícios do que é hoje Maputo.
SAVANA – 05.03.2010