O SOL nasceu com algemas. Nasceu em Mabalane de madrugada. Nasceu com os dentes arreganhados. Os presos debaixo de mira de G3’s carregadas de ódio. O sol nasceu com sangue. Nasceu na ponta de uma baioneta. O sol ficou bêbado de ouvir os cães rosnarem e os polícias insultarem os presos. Há quem pense que aquele sol era cínico. Um sol amigo nunca teria nascido. Ficaria escondido atrás das árvores. Atrás do horizonte. No infinito. Por isso há quem tenha visto aquele sol, barrigudo, aquele sol que os presos viam habitualmente na terra. Não fora aquele que os aquecera no frio de Mabalane. Não. Aquele era exclusivamente sol de Mbabane.
Maputo, Quarta-Feira, 31 de Março de 2010Notícias
Não aquecia. Até parecia não ter raios. Brilhava, mas não aquecia. Também não chorava como chorava a Savana. E os presos perceberam que há momento em que o sol não presta. Há momentos em que o sol é neutro. Alumia inimigos também: as baionetas que os queriam matar; os cães que os queriam abocanhar; os guardas que os queriam pisar.
Faziam chamada. Os nomes obedeciam a uma ordem a uma ordem não alfabética. Era uma ordem criteriosa. Escolhida. Policial. Selectiva. À medida que os presos saltavam do vagão para as bagagens dos camiões, guardas armados algemavam-nos dois a dois. Mão direita de um com mão esquerda de outro. Depois empurravam-nos. E os presos caíam como sacos parecendo que por terem viajado num vagão de carga se haviam transformado em mercadoria. Caíam no soalho duro das bagagens dos camiões.
Insultos atroavam os ares envergonhando a Savana:
- Filhos da puta! – insistia histericamente um guarda que estava constantemente a fungar.
- Terroristas! – gritava outro que parecia não saber dizer mais nada.
À volta, guardas armados de G3 e FN. Tropa com camuflado. Tratadores segurando, nervosos, cães-polícias também nervosos. PIDE e tropa abanando os pés abertos em posição de tiro. Dedos nervosos no gatilho. Olhos chispando ódio.
Entre os presos, mesmo os mais corajosos, estavam atemorizados.
- Caluda! Aqui ninguém fala!
Um pontapé acertou na barriga de um dos presos que cochichara qualquer coisa ao ouvido de outro com quem ia algemando. O agredido caiu arrastando o seu companheiro. O safanão fez as algemas apertarem-se. Os pulsos, com o sangue paralisado, começaram a inchar e a doer como só dói um dente roído.
- Tu, aí chega para trás! Não ouvistes?
O preso não obedeceu de imediato porque o não poderia fazer sem atulhar os outros com o seu corpo. Lentamente arrastou-se para trás para que o seu companheiro de algemas o seguisse nesse movimento e para que os estavam atrás tivessem, por seu turno, tempo de se afastarem.
- Não ouviste?
Esta interrogação curta foi acompanhada de um gesto assassino. O guarda espetou com violência a baioneta calada no corpo do preso que se chegava lentamente para trás porque não queria atulhar os outros com o seu corpo. Espetou a baioneta como o haviam ensinado. Espetou-a na direcção do coração. Espetou-a na direcção da vida daquele preso que ousava ser lento. Espetou-a como quem se vinga.
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Foi nesse momento que os presos voltaram a ouvir a voz da Savana. Não falou. Não cantou canções de embalar. Pressentia-se que havia hululado muito. Tinha voz rouca. Mas não chorava. Apenas gritou um grito breve como piar de pássaro.
A baioneta, no momento em que estava mesmo para entrar no coração do preso, estremeceu com o grito da Savana e perdeu sítio onde a ponta da baioneta mordera. E a baioneta voara em direcção ao lugar onde, no homem, fica o coração. O preso havia escutado a mensagem da Savana e saltara para trás não se importando já que o seu corpo atulhasse os outros. Aumentara, bruscamente, a distância entre eles e o braço metálico assassino. O guarda tropeçou. Ia caindo.
- Preto de merda! – disse a fungar.
E, como se quisesse reencontrar equilíbrio que perdera, enviou um pontapé ao acaso que acertou, numa das partes do corpo do preso. Este, olhava insistentemente, com olhos de lua, para o guarda.
- Se me olhas, mato-te!
O preso baixou os olhos. Quem viu diria mesmo que ele estava envergonhado.
A madrugada diluía o som das crianças que choravam no vagão onde estavam as mulheres. Estas espreitavam para ver os seus namorados e maridos. Os homens não falavam muitas coisas. Não podem. Apenas segredem ao companheiro de algemas para se mexer porque um simples gesto aperta-se ainda mais.
Do comboio ao campo de Mabalane a distância é curta.
A estrada vai quase a descer apontando para o inferno. Custa a crer que é feita da mesma terra que a Savana. A distância é curta mas ninguém pode adivinhar a prisão do lado da linha fêmea. Quem terá sido o agrimensor que indicou aquele terreno? Quem terá sido o colono de capacete que chegou àquela zona? Todos os dias passavam comboios com passageiros mas ninguém poderia adivinhar o campo de Mabalane. Nem o tecto das suas altas guarnições se via da linha-férrea.
O campo ainda estava em construção. Todos os pavilhões, com várias celas colectivas, estavam inacabados. Apenas uma sofrera obras apressadas no interior.
Os pavilhões estavam separados por vedações de rede grossa, duas vezes a altura de um homem. Estas vedações terminavam em arame farpado, bem esticado, quatro filas de espinhos metálicos agarrados a suportes que faziam ângulo agudo virado para os pavilhões.
O conjunto do campo era emoldurado por torres de guarnição, por uma cercadura de arame liso e, da parte de dentro, por arame farpado. Quem quisesse abraçar a Savana, que começava a dois pulos da vedação, primeiro encontraria o arame farpado, depois o arame liso.
As celas tinham três janelas: uma na porta de ferro, outra na parede de cimento que sustém a porta metálica e, a última, na extremidade oposta onde se situa a retrete colectiva. A pia assentava numa elevação de cimento. O conjunto sanitário era cercado por um muro de três palmos e meio de altura.
Este é o local onde os presos haviam chegado.
O eco imitava o ruído dos camiões que entram no campo de concentração de Mabalane. A madrugada estava fresca de sangue. Não era uma madrugada qualquer. Ela mesma o sabia. Por isso vestia-se com solenidade e escolhera o vermelho.
Os homens desceram, dois a dois, dos camiões. Tiraram-lhes as algemas. Os de cada camião iam para uma cela colectiva. Eram três os camiões. São três as celas dos homens. O camião das mulheres e crianças viria depois. Outra cela se abriria.
O sol começou a sorrir como se fosse estúpido. Os homens viram com clareza onde estavam. Através de um corredor constituído por guardas armados em duas filas paralelas atingiam as celas nuas. Traziam roupa suja, a mesma com que haviam saído de Mbabane, dois dias antes, julgando que iam para Dar-Es-Salaam. Em Mbababne a roupa estava limpa. Em Mabalane estava suja. Quem quisesse ver dignidade que olhasse para os olhos, para o porte e não para a roupa. Eram passageiros de uma trágica viagem.
A cela é nua com paredes pintadas de fresco. Vê-se que o pincel tinha pressa.
- Nós é que estamos a inaugurar esta cadeia – diz tristemente uma voz.
Acabaram tudo isto à pressa para nos receber. Isso prova que já sabiam que nos iam prender.
- Eu não duvido que fomos raptados. Já não duvido.
- Mas quem nos vendeu?
Estas são as primeiras frases das milhares que iriam trocar entre si. As bocas dos presos, como que por magia, tinham-se libertado e todos falavam em voz alta. As suas bocas falavam aquilo que as suas mentes, espantadas, começavam a compreender. Como que por magia, falavam todos ao mesmo tempo. Falavam numa voz alta que chegava à Savana. Falavam em voz alta para se sentirem mais unidos. A voz alta espantava o medo porque chegava à Savana.
- Olhem as mulheres – anuncia alguém que estava a contar os pavilhões defronte da cela.
Todos correm para vê-las. Trazem crianças às costas.
- Coitadas! Pobres crianças!
Chega um guarda furioso. Zangado como se o facto de os presos estarem a ver as mulheres lhes desse a liberdade que ele está encarregado de cortar.
- Para dentro, cães. E caluda! Isto não é uma feira, ouviram?
Os presos obedeceram. O silêncio fez-se. As sombras da insegurança apareceram e cresceram num instante. Até porque já não viam as mulheres que, corajosas, haviam acenado para todas as celas.
O silêncio atingiu a Savana que ficou pensativa. Foi quando ela suspirou que alguns presos começaram a sentir fome. Desde que haviam saído da prisão de Midleburg, onde na manhã anterior os boers lhes haviam dado papa salgada, ainda não haviam comido. A tensão não lhes permitia, também, sentir fome. Quem na tempestade, pensa em comer? Oh, mas agora, naquele silêncio a fome gritou.
O cansaço acompanhava-a. Cela. Paredes brancas. Silêncio. Savana pensativa.
O tempo passa. O sol está cinicamente sorridente.
- Vamos embora! Tudo em fila, rápido!
Era um guarda que antes mesmo de abrir a cela já dava ordens de fora.
- Tu, o primeiro vamos embora!
A porta escancarada mostra uma agente armado.
O primeiro sai e a porta fecha-se. Silêncio. Passam-se longos minutos que parecem uma eternidade. Ruído na porta. É o guarda que traz o primeiro preso. Este vem ferido no pescoço e sangra. A sua camisa tem a cor da madrugada que os vira chegar. Traz um braço inchado. Ninguém lhe pergunta nada. Silêncio. O guarda está ali, armado.
- Albino Magaia
NOTA:
Outra visão de Mabalane em http://ihna-kaya.blogspot.com/2009/02/mabalane.html