Na ocasião, foi privado, temporariamente, da sua liberdade, o Primeiro-Ministro, Carlos Gomes Júnior, num acto que teve uma particularidade de não envolver o Presidente da República, Malam Bacai Sanhá. Não ficou bem claro o que o levantamento visava, num país cheio de mistérios, acontecimentos estranhos como o assassinato de um chefe de Estado com uma facilidade espantosa. Este acto foi reavivado na memória colectiva pelo “1 de Abril”, sugerindo ao mundo a necessidade de uma “reinvenção” do Estado guineense.
Há dias, o “Notícias” teve a possibilidade de conversar com uma fonte especial, conhecedora das linhas com que se cose a História da Guiné-Bissau, um homem que privou com “Nino” Vieira, numa relação que lhe custou o exílio. Trata-se de João “Renato” da Silva, ex-tradutor-intérprete de “Nino” e mais tarde seu conselheiro especial. Neste momento deve ser um dos poucos guineenses que resgatam a imagem de “Nino”, embora não deixe de apontar as fraquezas do general e que determinaram a maneira como governou. Acredita que a estabilidade do país está na reforma das Forças Armadas, num processo em que é preciso olhar muito para os militares, esquecidos no passado, ou então avançar para uma solução radical. Esta passaria pela contratação de mercenários para proteger o Presidente e garantir a paz que o país, pobre, precisa para atrair investimentos. João da Silva conhece igualmente a história da fase mais crítica do processo de paz angolano, pois foi tradutor-intérprete dos três representante especiais da ONU em Angola, mas marca-o a sua convivência de cinco anos com o maitre Alioune Blondin Beye.
O nosso entrevistado é apanhado pelo golpe contra “Nino” (em 1999) em Washington e de lá não mais voltou para a terra, por medo de ser morto, e pediu exílio aos americanos.
Notícias (NOT.) - Por que é que pede exílio nos Estados Unidos, algo ia acontecer consigo, e por que razão?
João “Renato” da Silva (JS) - Na altura em que “Nino” é derrubado por Ansumane Mané, a 7 de Maio de 1999, eu estava nos Estados Unidos. E, na qualidade de tradutor-intérprete do Presidente, as pessoas podiam pensar - e com razão – que tenho segredos com o Presidente da República. Um dia antes de regressar ao país, acontece o 7 de Maio. Então pedi asilo. Se eu fosse a Guiné Ansumane Mané amarrava-me, claro. Fiquei e os americanos deram-me asilo, depois de provarem que tinta sido tradudor-intérprete de “Nino” Vieira. Estou lá (nos EUA) há dez anos. Também havia um problema que partiu do contingente de 12 soldados guineenses que estavam na missão da ONU em Angola, entre os quais Zamora Induta. Quando o grupo termina o seu mandato pedi pessoalmente ao Presidente “Nino” para renovar o mandato dos 12 homens. E o Ansumane Mané não gostou e nem podia gostar porque tinha o grupo dele preparado em Bissau para ir substituir os que lá estavam. E com a renovação do grupo de Zamora era normal que ele se aborrecesse. Ganhava-se muito dinheiro ali (na missão da ONU em Angola). Tanto é que quando chego a Bissau, em 1997, de férias, tento lhe apertar a mão, ele vira-me as costas.
NOT - A Guiné-Bissau acaba de sair de mais um levantamento militar cujo objectivo não esteve muito bem claro. Foram detidos o Primeiro-Ministro (por algumas horas) e o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), o Presidente da República não foi tocado. Que leitura faz destes factos?
JS - Na minha opinião, num país onde a classe castrense subordina a classe política esse país não vai a lado nenhum. Os políticos é que devem controlar ou, por outra, os militares devem subordinar-se ao poder político. É claro que não tem sido assim na Guiné-Bissau, onde o serviço militar é visto como profissão. Mas eu compreendo: você não pode amarrar o cabrito no deserto e esperar que ele coma areia. Os militares devem ser tratados como bebés. Devem ser mimados porque têm armas. E quem tem arma é um perigo. Há necessidade de se reformar as Forças Armadas, tal como vocês fizeram cá, em Moçambique. Eu peço aos dirigentes do meu país para imitarem Moçambique. Tentem reformar as Forças Armadas, mas é preciso dinheiro. Você não pode dizer a um militar para entregar arma e, depois… há de ir para onde?
NOT – Malam Bacai Sanhá não foi mexido, entende porquê?
JS – Por que é que tinha que ser mexido? Sei que na Guiné-Bissau, neste momento, há um problema entre o Na Tchuto e Zamora Induta, dois militares da mesma etnia. Dois militares que sempre lutaram pelo poder. Primeiro pela chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas. Bubo acabou assumindo a chefia do Estado-Maior da Marinha. Zamora o cargo de CEMGFA. Bubo fugiu para o estrangeiro, onde ficou vários meses. Entretanto, na minha opinião o Primeiro-Ministro está no campo de Zamora, e Na Tchuto no do Presidente Sanhá. Quem desequilibra a balança é o comandante António Indjai, o actual CEMGFA, que era adjunto de Zamora. E a balança pende para o lado do Presidente. Se tivesse sido Zamora a levantar-se primeiro quem iria preso era o Presidente. Zamora aqui foi traído pelo seu adjunto, que mudou do campo.
NOT - Um dia depois do “1 de Abril” Indjai e Na Tchuto apresentaram publicamente armas encontradas na residência de Zamora Induta. Que comentário faz?
JS- Na minha opinião, os dois campos estavam a preparar-se para qualquer coisa. O campo do Primeiro-Ministro, de que faz parte Zamora, e o oposto – do Presidente da República e Bubo Na tchuto. Quem se levantasse primeiro liderava o país. O grupo de Na Tchuto foi o primeiro a levantar-se e saiu-se bem. Mas a minha leitura é que os dois campos estavam a se preparar, um contra o outro. Eu acho que se Zamora se tivesse levantado, Malam Bacai Sanhá não estaria a falar agora. Foi o general António Indjai que se levantou. Zamora confiou cegamente em António Indjai, que até era o seu adjunto. Ele foi o elemento-surpresa, ao mover-se de um campo para o outro. Mas na Guiné é assim.
NOT -O partido de Kumba Ialá diz que a pessoa que transportou e colocou a bomba que matou Tagmé Na Waie é um ex-guarda-costas de Gomes Júnior. Isso significa que o Primeiro-Ministro sabe de algo? O que o Sr. sabe disto?
JS - Não sei, nem posso me pronunciar porque é opinião do PRS. O que eu sei é que antes de morrer o Presidente não estava bem com o Tagme Na Waie. Tanto é assim que o CEMGFA (Tagmé) mandou substituir a guarda presidencial de “Nino”. Tirou os homens da confiança de Nino e colocou os da sua confiança. A “corrente” não passava entre “Nino” e Tagmé.
NOT- Daí, toda aquela facilidade com que os militares entraram para a casa do Presidente e não encontraram resistência nenhuma…
JS - Facilitou porque os homens que guardavam o Presidente não eram da sua confiança. Aquilo foi como faca na manteiga. Se fossem homens da confiança de “Nino” teriam resistido. Facilitou, sim. Ou melhor, os homens eram balantas, uma tribo que se quer assumir. É a tribo que mais morreu durante a luta - os balantas, verdade seja dita -, é a tribo que mais morreu e, por isso acha que tem mais direitos. Sabe que em África, esta coisa de tribo conta e pior na Guiné-Bissau. O grande problema da Guiné é que antes de se ser guineense se é balanta, mandinga, fula, papel e por ai fora…
NOT- O Presidente “Nino” não percebeu esta cabala?
JS -: “Nino” percebeu, sim. O que havia ele de fazer? “Nino” percebeu que começava a perder o poder, mesmo no Governo, para não falar das chefias militares.
NOT- Carlos Gomes Júnior e Zamora Induta, particularmente, quase que festejaram a morte de “Nino”. Como é que o senhor entende esta atitude?
JS - Zamora, particularmente, não era amigo de “Nino”. Ele foi porta-voz da Junta Militar que derrubou “Nino”. Quanto ao Gadogo (alcunha de Gomes Júnior) também não. Era apenas um amigo de negócios. Não o agradava, tanto mais que ele teria dito que se “Nino” ganhasse as eleições ele mudaria do país. Aproveito agora dizer que se “Nino” não tivesse morrido eu teria sido candidato às eleições presidenciais seguintes. Tornei-me delfim de “Nino”. Ficou combinado assim. Ele teria anunciado isso ao povo guineense. O Valentim Amós (um empresário angolano que morreu num acidente de aéreo no Huambo, Angola) é que teria financiado a minha campanha: colocar cinco navios, com 20 mil toneladas, no Porto da Guiné, e dar 10 milhões de euros e dois aviões dele para a minha campanha.
NOT: Tem alguns elementos novos à volta da morte de “Nino” Vieira?
JS – Não os tenho. Estou na América. Para mim o que aconteceu faz parte do destino. Para morrer basta nascer. Onde, quando e como é que não sabemos. “Nino” morreu de pé. Morreu porque era general, chefe de guerra. Foi “Nino” Vieira que obrigou os portugueses a chamarem a Guiné-Bissau de Vietname português por causa dos revezes dos colonos no campo de batalha. Os soldados portugueses que se comportavam mal aqui em Moçambique e em Angola eram enviados como castigo para a Guiné-Bissau. Governou durante 19 anos, não gostaram dele, foi derrubado, exilou-se e quando voltou foi reeleito.
NOT- Como evitar a violência cíclica na Guiné-Bissau. Que solução para o país?
JS - Com os militares não se brinca. Luís Cabral foi derrubado porque confiou mais na segurança do que nos militares. Eles são os que têm armas. “Nino” Vieira quase que repetiu o mesmo erro. O Banco Mundial e o FMI colocaram-no a famosa proposta - cujo contexto é sempre o mesmo, a data é que muda - que tinha que reduzir a função pública e as despesas militares. É o conselho que deram a “Nino”. Foi uma medida impopular. O “Nino” fez o pior, pois em vez de reduzir as despesas militares, esqueceu-se dos militares. Abandonou-os. Indo concretamente à sua pergunta, devo dizer que para mim, a estabilidade passa por duas soluções: uma radical e outra moderada. A moderada seria reformar as Forças Armadas. Dar o que eles querem, que nem é muito. Dar-lhes algo em troca das armas. A radical seria, então, arranjar 200 a 300 mercenários para a guarda presidencial, constituída por militares que se ocupassem de impedir golpes de Estado, e acabar com estes fenómenos de uma forma radical. Homens que se você tenta uma intentona amarram-te em dois tempos. É isso que é preciso fazer na Guiné Bissau. Há governos no mundo que têm mercenários israelitas a proteger os presidentes. Eu faria isso na Guiné-Bissau. Enquanto não houver uma destas duas alternativas nós vamos continuar a testemunhar golpes de Estado. E a Guiné-Bissau vai continuar a servir apenas como um exemplo horrível, tal como disse o MC Roger (o jovem músico moçambicano).
NOT- “Nino” é considerado responsável pela morte e/ou tortura de adversários políticos guineenses. O que sabe disto, tendo sido, o senhor, um elemento próximo a ele?
JS – É normal que o Chefe de Estado seja sempre o culpado. Ele tinha que assumir muitas das coisas feitas por gente que o rodeava. Não estou a defendê-lo. Era um homem com mais virtudes que defeitos. Eu não lhe dizia o que queria ouvir.
NOT- Numa das suas aparições, Tagmé afirmava quase que “Nino” o matava, por exemplo…?
JS: Até dizem que o castrou. Se ele o tivesse maltratado Tagmé não o teria autorizado regressar do exílio. “Nino” regressou porque Tagmé o quis. Carlos Gomes não queria, Zamora não queria. Se ele tivesse feito o que dizem que fez ele não teria regressado. Não tenho provas, mas acredito que são alegações. Não há provas de que “Nino” fez isto ou aquilo. Não defendo. São coisas que aconteceram durante o mandato dele. E ele não se recusou. Ele assumiu. É o caso de Paulo Correia. O vice-presidente Balanta que foi morto. Ele assumiu esta morte. Agora quem é que beneficiaria da morte de Paulo Correia? O “Nino”? Paulo era o primeiro vice-presidente e havia um segundo vice-presidente, Iafai Camará. Quando o primeiro morre quem é que assumiria? Por que é que o segundo nunca assumiu o cargo do primeiro? Porquê? É porque alguém disse: “tu mataste para poder ocupar o lugar. Já que é assim não ocupas o lugar”. Essa pessoa que disse isso foi o “Nino”. Mas ele assumiu este e tantos outros actos porque aconteceram no seu reinado. “Nino” era um homem humilde. Foi o único Presidente que já vi a conduzir. “Nino” conduzia nas ruas de Bissau, uma humildade irritante e às vezes até ridícula.
NOT - … mas também foi alvo de acusações sobre corrupção…
JS- Dizem que “Nino” distribuía fundos do Estado. Se você explicasse ao “Nino” que tem problema financeiro ele obrigava-te a fazer uma carta para o governador do Banco Central. Mas o que as pessoas não sabiam é que havia dois tipos de despacho. Se ele julgasse o assunto sério ordenava ao governador do Banco Central para atender o seu pedido. Mas se visse que era mentira ou aproveitamento o Presidente recomendava ao governador do Banco para ver as possibilidades reais do Banco, o que significa que você não era elegível para o empréstimo. Era quase que um código. Eram empréstimos que as pessoas contraíam. Os que não pagaram é porque não quiseram pagar. O homem era generoso. As pessoas que falam hoje cá fora são as pessoas que beneficiaram dos empréstimos autorizados por “Nino”. Havia uma máxima na Guiné-Bissau, segundo a qual “você tem problemas até se avistar com o Nino”. Não estou a engraxar, até porque já morreu. Se de facto as pessoas acham que o problema era o “Nino”, então deixem o Nino em paz e trabalhem para o país. Desenvolvam o país porque o “Nino” morreu.
NOT- Falou das virtudes de “Nino”. E as suas fraquezas?
JS - Eu era conselheiro e delfim de “Nino”. Ele tinha muitas limitações. Foi para a guerra com segunda classe. Formou-se quando assumiu o poder. Chegavas ao gabinete dele e te diziam que o Presidente está em aulas. Não tinha vergonha disso. Tinha limitações e dependia muito dos seus conselheiros. Muitos diziam coisas para o agradar como, por exemplo, dizer ao Chefe de Estado que um determinado discurso seu tinha sido o melhor de sempre. Isso é insultar o Presidente porque ele sabe que não foi ele quem fez o discurso. Ele tinha muitas limitações e dependia muito dos conselheiros. Ora, o Chefe de Estado tem que ter o mínimo para depois de ouvir os conselheiros retirar-se e ir para o quarto dele, analisar durante a noite e tomar uma decisão. Ele era guiado, apenas. Diferentemente, eu dizia sim chefe, mas acho que devíamos fazer desta ou daquela maneira. É por isso que ele gostava de mim. Por isso, era o único homem autorizado a interromper o sono de “Nino”.
NOT – Os EUA anunciaram o congelamento das contas de Na Tchuto e de Camará. Que mensagem os EUA querem transmitir para um país onde a droga parece interferir nos negócios do Estado?
JS - Primeiro, acho que Na Tchuto nem tem dinheiro nos Estados Unidos. Mas os americanos fazem isso como uma dissuasão, que é isso que vai acontecer a todo o indivíduo que se meter no assunto da droga. Se os americanos têm provas, não sei. Se as tivessem teriam dito logo, acho eu. Conheço os americanos, mesmo brincando eles são sérios. Mas a verdade é que todo o mundo vendeu droga no país. A partir do Presidente até ao cidadão comum. Quero que saiba que dois factores contribuíram para que os guineenses se envolvessem no negócio da droga: a extrema pobreza e sem perspectiva de futuro – o país é muito pobre - e a sua localização geográfica (a proximidade com os países da América Central). São quatro horas de voo, da Colômbia para a Guiné-Bissau. Digo-te que se eu estivesse na Guiné e alguém me pedisse para ajudar a traficar a droga em troca de 100-200 dólares eu não hesitaria. Porque não tenho nada para dar aos meus filhos. É uma questão de sobrevivência. O cabrito come no lugar onde está amarrado.
NOT - Quais são os desafios dos guineenses?
JS - Os dirigentes guineenses têm de deixar de olhar os emigrantes como inimigos. Tem de haver um equilíbrio. Vejam só Cabo Verde. Este país tem apenas dois recursos: turismo e receitas dos emigrantes. Pedro Pires (Presidente de Cabo Verde) está toda a hora fora com os emigrantes e quando chega tira fatos e conversa com eles como se fossem colegas. Eles precisam de ser acarinhados porque têm dinheiro. Os emigrantes são que têm dinheiro, o país não tem. A Guiné-Bissau tem talentos. Temos quadros capazes. Resolvido o problema dos militares e harmonizado o relacionamento entre o interior e a diáspora o resto não é nada. É ouro sobre azul. E, na sua política exterior, como lusófono, lanço um apelo aos dirigentes guineenses para que sigam o exemplo de Moçambique e que contem com Angola. Este país pode ajudar. É um país incontornável, queiramos sim ou não.
NOT - Será por isso que Sanhá se deslocou, logo após o 1 de Abril, a Angola?
JS - Foi a Angola e só fez muito bem. Porque a corrente não passava entre Eduardo dos Santos e “Nino”. “Nino” - e é o que eu sempre disse - portou-se mal com o Presidente José Eduardo dos Santos. O meu Presidente colocou o mandato da Guiné-Bissau no Conselho de Segurança ao serviço da UNITA em vez do MPLA. Era mais amigo de Savimbi do que de dos Santos. E isso não agradou ao Presidente angolano. E tinha razão. Nós (os guineenses) beneficiámos muito da ajuda angolana. Luanda enviava o seu avião, com a tripulação paga para o Presidente Nino viajar para onde quisesse.
NOT- Como e quando é que começa esta relação?
JS - Eu é que apresentei o Presidente “Nino” ao Eugénio Manuvakola (então um dos homens mais confiados de Jonas Savimbi), em Lusaka, a 20 de Novembro de 1994, aquando da assinatura dos acordos de paz de Lusaka entre a UNITA e o Governo angolano. A partir daí, o Savimbi dizia que todo o mundo é comprável, o preço é que variava.
NOT- O que se passou depois, terá o Presidente “Nino” tido qualquer envolvimento na guerra de Angola?
JS - O que se passou é que ficaram amigos (“Nino” e Savimbi). Aquando da morte do filho de “Nino”, Valdemiro Vieira, o Sr. Jonas Malheiro Savimbi enviou uma delegação composta pela mulher, Ana Isabel, e o chefe de protocolo dele (Savimbi) para apresentar condolências ao Presidente “Nino”. O que aconteceu depois, se envolvimento na guerra ou não, não sei. Mas foi depois disto que Savimbi disse que todo o indivíduo é comprável, o preço é que varia.

ESCAPEI DA MORTE PORQUE BEYE MANDOU-ME FICAR
JOÃO da Silva recorda-se e muito bem dos últimos momentos do maliano Alioune Blondin Beye, representante da Missão de Paz das Nações Unidas em Angola, quando cumpria um périplo por cinco países africanos, no contexto de busca de paz para aquele país da CPLP.
Segundo conta o também ex-tradutor-intérprete do maliano, quase que a entrar no avião em Luanda Beye é solicitado pelo piloto para aguentar mais uns cinco minutos para acabar de limpar o avião, pois não acordara a tempo de preparar o voo, ao que o maliano respondeu que iria entrar mesmo em tais condições.
Perante a insistência do maliano, o piloto quase que empurra Beye e repete: dê me só cinco minutos.
“Fomos sentar e Beye olha para mim e pergunta-me: por que é que vais comigo?”, lembra-se João da Silva. “Porque sou o intérprete, maitre”, respondeu ele. João da Silva conta que a resposta que recebeu do Beye foi que não era necessário, uma vez que todos os presidentes com que se ia avistar falavam Francês. O guineense ainda tentou dizer que o são-tomense Miguel Trovoada não falava a língua, tendo o representante da ONU se lembrado que tivera, no passado, com o Presidente Trovoada uma conversa em Francês.
“Foi assim que fiquei em terra”, disse João da Silva, acrescentando ter ficado algo triste porque a viagem significava também algum encaixe. Beye deixou Luanda com destino a Libreville, Gabão e depois seguiu para Lomé, Togo. Aqui, o Presidente Eyadema diz não ter tempo de o receber, o que Beye não percebeu porque tudo estava acertado. Mas antes de deixar Luanda na manhã do fatídico dia, 26 de Junho de 1998, convocou uma reunião com o pessoal para dizer que a partir dali, sempre que viajasse, não deixaria os pilotos no aeroporto a sofrer, enquanto ficava no hotel a comer bem. Todos os pilotos teriam que estar no hotel onde estivesse. Perante a resposta de Eyadema, Beye leva toda a comitiva para o hotel, incluindo a tripulação, que devia ficar a vigiar o avião no aeroporto. Mas ao mesmo tempo avisa que a qualquer momento poderiam ser chamados para a audiência, o que viria a acontecer três horas depois. No fim, um ministro togolês, pergunta a Beye se viajaria para Abidjan naquela noite. Ele respondeu que sim. Tinha que dormir em Abidjan porque o esperavam a minha mulher e filhos. O ministro insistiu, mas maitre foi irredutível. O avião descola, uma hora e 10 minutos de voo de Lomé para Abidjan. Quando o aparelho se aproxima do aeroporto de Abidjan, o comando do piloto chama a torre, na altura a 10 mil pés de altitude, recebe a ordem para descer para 2500 pés e voltar a chamar. O avião, pilotado pela tripulação da ONU, inicia a descida e explode. De Bey, só apanharam um pedaço do seu bilhete de identidade. Morreram, e de que forma, todos. Eram nove elementos. Escapei porque no aeroporto de Luanda, o chefe dissera que não precisaria de mim. Se foi uma cabala, quem a urdiu não sei. Mas os indícios, o avião, os destroços, deram a entender que a coisa foi feita algures. Só pode ter sido no Togo, onde ficou sem guarda durante três a quatro horas.

FOMOS (A ONU) CORRIDOS DE ANGOLA
Beye foi substituído à frente da missão de paz da ONU em Angola pelo guineense Issa Dialló. João da Silva, que tinha sido tradutor-intérprete também da primeira representante das Nações Unidas, a britânica Margareth Anstee, manteve as funções e trabalhou, desta feita com o seu compatriota, Dialló. Este também fracassa. “Fomos corridos de Angola, depois de o Presidente ter dito que nós estávamos a brincar, pois Savimbi se armara a nossa frente”, narra João da Silva.
O Presidente angolano é muito paciente, mas foi ele quem disse que a paciência é uma grande virtude até ser vista como fraqueza.
Esta declaração do Presidente angolano era, provavelmente, em reacção a Savimbi, que considerava dos Santos um homem fraco.
“O que eu senti é que o MPLA cumpria com todos os pontos do acordo. A UNITA não. Savimbi era astuto. Assinava os acordos e depois ficava para ver o que iria acontecer na arena internacional, se o Presidente dos Santos morreria, como na altura se dizia que tinha cancro na próstata e se os Estados Unidos mudavam de posicionamento por alguma razão, etc. Usava o acordo como escudo. O presidente dos Santos percebeu isso e, por isso, disse que queria fazer a guerra para acabar com a guerra. E foi o que aconteceu”, sublinhou.
QUEM É JOÃO “RENATO” DA SILVA
EXILADO nos Estados Unidos desde 2000, na sequência da queda do regime do Presidente João Bernardo “Nino” Vieira, quando Ansumane Mané entra no Palácio, no dia 7 de Maio de 1999. Na altura João da Silva encontrava-se em Nova Iorque, ido de Angola, à espera que a ONU pagasse o dinheiro que a organização mundial o devia, após ter servido, durante cinco anos, como tradutor-intérprete do enviado especial das Nações Unidas em Angola, o maitre Alioune Blondin Beye.
Após a morte de Beye, no acidente aéreo, faz o mesmo trabalho com o substituto do maliano, Issa Dialló, seu compatriota.
Antes trabalhara durante oito anos na embaixada egípcia em Bissau, onde foi descoberto por “Nino” Vieira. Passou a ser tradutor e intérprete do falecido Presidente guineense, ate este o libertar para outros “voos”. Nesta qualidade, serviu para todo o Governo da Guiné-Bissau. Foi também tradutor-intérprete também para a OMVG (Organização para o Aproveitamento da Bacia do Rio Gâmbia) que envolve quatro países, incluindo a Guiné-Bissau.
Prestou os mesmos serviços para o Comité Inter-Estatal para a Luta contra a Seca no Sahel, que integra nove Estados e também para a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental).
“Nino” regressa do exílio, em 2005, ganha as eleições e, em 2007, o nomeia, a partir de Nova Iorque, conselheiro especial para os Assuntos Internacionais, funções que manteve até à morte daquele em 2009.
- LÁZARO MANHIÇA