Certo dia, Nakuhima, filho primogénito de Madage, exímio caçador como o pai, embrenhou-se na mata de Magumeto para caçar. Levava consigo a “calibre 12” do pai e já era homem, pois havia realizado algumas jornadas nas minas do Rand, na África do Sul. Estava com grande apetite e pretendia arranjar algo para satisfazê-lo, mesmo que se tratasse de algum macaco.
Chegado à floresta de Magumeto, Nakuhima penetrou silenciosamente no seu interior, tendo descoberto, debaixo de uma frondosa árvore, uma clareira que apresentava sinais de pegadas de antílopes. Acocorou-se, apoiando a coronha da espingarda no chão e fixou atentamente o olhar no trilho aberto pelos animais em direcção ao rio.
Por debaixo da frondosa árvore, espessas gotas de “cacimba” iam caindo, mesmo em frente a Nakuhima que, entretanto, nem lhes ligava de tão concentrado e ansioso de ver surgir, trilho acima, algum antílope regressando do rio, depois de matar a sede.
O tempo parecia não ter importância para o caçador que continuava absorto nos seus pensamentos, rogando preces a Deus para que algum antílope surgisse para retornar à casa, onde seus filhos e esposa o esperavam pacientemente.
Encontrava-se absorto nos seus pensamentos quando, de repente, a sua atenção se desviou para as gotas abundantes que caíam com intensidade cada vez maior junto de si, começando a molhar o chão à sua frente.
Ao levantar o olhar para a copa frondosa da árvore, deparou-se com algo que o fez rebolar instintivamente no chão, sentindo o coração a bater fortemente como se pretendesse saltar-lhe do peito. A escassos metros da sua cabeça, uma magnífica jibóia encontrava-se com a cauda ainda presa ao ramo da árvore, prestes a lançar-se sobre ele.
Com uma extraordinária rapidez, característica dos bons caçadores, levantou a espingarda e disparou, atingindo em cheio a jibóia que se desprendeu do ramo e chicoteou violentamente o ar, antes de cair e contorcer-se dolorosamente no chão, exactamente no lugar onde Nakuhima se tinha acocorado, segundos antes.
Um olhar sobre a volumosa serpente convenceu-o de que a mesma havia sido mortalmente atingida, não tendo por isso repetido o tiro. Acabava de escapar de uma morte certa.
Para realizar ataques com segurança, a jibóia escolhe os trilhos por onde passam os animais e enrola-se em ramos de árvores, aguardando a passagem das suas vítimas, sobre as quais se lança, enroscando-se nelas. Em seguida, estica-se fortemente, quebrando os ossos da vítima e estrangulando-a. Após a morte, a vítima é humedecida com líquidos bucais e engolida, permanecendo a jibóia no local até a digestão se completar, o que acontece passados alguns dias, dependendo do tamanho do animal. Ataca o homem, antílopes, cabritos e pequenas espécies.
Terminada a luta, Nakuhima teve de se contentar com aquela caçada diferente das habituais, tendo arrastado a jibóia para casa. Pelo caminho, pregou sustos a muita gente que, apesar de residirem em Canda, raramente beneficiara de semelhante espectáculo. muitos haviam ouvido falar de jibóias, mas nunca as tinham visto, e muito menos nas mãos de um homem.
Porém, à medida que ia caminhando, contava a sua história aos circunstantes, convidando-os em seguida ao banquete que teria lugar em sua casa. Muitos mostravam repugnância diante de tão estranho “trofeu”.
Os que não gostaram da história foram os filhos e a esposa que aguardavam pacientemente o regresso do chefe de família, ávidos de comer carne de caça; e entretanto estavam sendo presenteados com algo cuja existência não haviam antes imaginado.
A jibóia foi consumida totalmente, sendo preferida pelos idosos e trabalhadores das minas do Rand, a geração adulta. As mulheres não pareciam muito inclinadas para aquele tipo de manjar, excepto algumas frequentadoras dos círculos de consumo de bebidas fermentadas onde os apetites parecem andar exacerbados. A pele foi conservada como recordação daquele dia e guardada para a posteridade.
A Cura de Xipanele
Numa manhã fresca e coberta de cacimba, Xipanele ia à machamba em companhia de Racheli sua esposa e de um dos seus filhos. Iam os três descalços porque o sapato era uma raridade naquelas paragens, sendo usado em dias de grande realizações e, mesmo assim, por aqueles que porventura tivessem demandado terras sul-africanas, para onde se dirigiam em busca de trabalho nas minas do Rand, ou por alguém que tivesse algum filho trabalhando nas terras de Mpfumo.
O mais natural era as pessoas andarem com os pés descalços, percorrendo longas distâncias em busca de meios de subsistência e nos inúmeros afazeres quotidianos. Por vezes, devido à intensidade das marchas, sofriam de inchaços que, entretanto, eram habilmente tratados por qualquer um, mesmo que não fosse curandeiro, com recurso a folhas ou raízes de plantas. O curandeiro intervinha em situações graves em troca de algum valor, principalmente nos casos em que se suspeitava serem obras de feitiçaria ou de espíritos maus ou ainda na consagração de possessos de Sikwembu. Estes eram tratados e purificados, transformando-se muitas vezes também em curandeiros.
Nessa manhã, rumo à machamba do norte1, eis que um espinho se espetou profundamente no pé de Xipanele, o que lhe valeu um grande inchaço no mesmo. Porém, todos os esforços feitos para convencê-lo a deixar extrair o espinho, a sangue-frio como era habitual, redundaram num fracasso. Recusara terminantemente a operação, tendo por isso ficado muitos dias na esteira, com a infecção a agravar-se. Foram inúmeros os apelos feitos, incluindo chamadas de nomes tais como cobarde, medroso...mas sem surtirem efeito algum. O destino se encarregaria da lesão que, entretanto, se ia agravando.
A satisfação de necessidades fisiológicas tinha lugar nas matas, em locais por onde raramente os homens circulavam. Xipanele, contra toda a sua vontade viu-se forçado a embrenhar-se na mata pela noite adentro, afim de responder aos apelos fisiológicos.
Uma noite, com uma vara servindo de bordão, lá se foi mato adentro e quando já se preparava para o acto que o levara à mata, eis que o vulto enorme de um felino se levantou de repente, aborrecido pela interrupção do seu descanso.- era um soberbo leão. Xipanele partiu disparado, empurrando e fechando violentamente a porta e trepando, acto contínuo, com a maior rapidez que lhe foi possível, para a Hathala23.
Aí, susteve a respiração, perscrutando, no negrume da noite, qualquer ruído na porta. Nada porém ocorreu, senão as exclamações de Racheli, sua esposa, que procurava, em voz baixa, saber que raio de coisa o marido vira.
De facto, Xipanele tinha fama de medroso e poucas ou nenhuma vez se fizera à caça com os outros homens, desfazendo-se sempre em mil e uma justificações, tais como estar com dores de estômago, ter que se deslocar a alguma terra onde um familiar morrera;....
Na manhã seguinte ao breve encontro com o felino; Ouviu-se um exclamação de Thapo, seu vizinho: Xipanele, finalmente acabaste tendo coragem de extrair o pico! Olhou para o pé ferido que, entretanto, já tinha voltado ao tamanho normal. Só então ele próprio compreendeu que o susto pregado na véspera pelo leão havia contribuído para a sua cura.
Na sua fuga precipitada, esquecera-se da dor e da lesão e o espinho foi expelido violentamente pela pressão exercida, bem como os líquidos acumulados pela infecção. Algumas raízes bastaram para curá-lo completamente.
O medo operara um milagre. Salvara Xipanele de uma deficiência certa.
<!--[endif]-->1– Celeiro construído na parte superior (interior) da palhota, para armazenagem de ferramentas, sementes, garrafões de aguardente, etc.
- ARNALDO MASSANGAI